quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Partido dos Sararás

Quem me protege é um Rei
que não fica com el culo sitted en el trono;
não tenho paz um só segundo
e eu gosto é disso.
É disso que eu gosto.

Não tenho sono nem sonho em noite de demanda
e estou sempre portando,
ando sempre armado
com o brilho protetor de Babá funfun - Oxalá.

Babá funfun me protege e acalma.

Gosto de Carlos Santana, Bethânia, Wilson Batista, Candeia,
Jovelina, Lawrin Hill, Luís Melodia e Sandra de Sá...

Mamãe, sempre com suas ervas,
me tirou quebranto, fechou me corpo e abriu meus
caminhos...
e sou Lindo.      Um Negro Lindo.      Lindão.

Ao me registrarem, disseram que eu era pardo;
meu pai, um grosso pernambucano, questionou:
"Que Porra é Essa? pardo é cor de papel vagabundo
e passarinho sem raça. Meu filho é Negro!"

Meu louco velho louco estava certo,
e esse é um dos poucos pontos de convergência entre nós;
no entanto, não sei o que ele diria dessa louca magia
que enfeitiça meu corpo desajeitado
quando escuto Sandra ou Márcia Short cantar Seus
Olhos Coloridos.

Vou fundar o Partido dos Sararás;
entretanto, só serão filiados
aqueles que sabem que são Negros,
caso contrário:
vão ralar em outro formigueiro!

África.        África.      África...
te amo com toda paixão e amor;
aonde quer que eu vá, a força do seu chão será sentida...
Através de meu espírito, dos meus sonhos, da minha
Atitude, dos meus passos, dos meus lábios, dos meus
pensamentos (...) dos meus cheiros...
Dos meus passos, dos meus sonhos, dos meus cheiros...
da minha atitude, dos meus cheiros, dos meus cheiros,
dos meus cheiros...

(Guellwaar Adún - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 107)

Agito, bebo o sumo

Ou de quando meu lado Ogã quer fazer poema.

Se o ponto é mentira, santo não desce;
descrevo, jogo. Resisto.
Se o canto é magia, o manto padece;
danço, logo excito.

A vida como ela é e ponto:
Intenso bógus, vírus;
na roda das futilidades -
lenço, logo espirro.
Trairagens e vacilantes contos:
Inscrevo fogo; desisto.
Numa certa curva... vaidades -
Confino e desço o fumo

Um vento desgovernado, incerto
Denso, fogo líquido
Se o paraíso repousa, é ouro de tolo
Beijo mamilo, hesito
E quando o céu parece perto
Canso, logo espicho.
Se a palavra é sombra, fetiche, dolo
com gritos, ergo mundos.

O mar em ondas que abraço...
prezo, rogo: invisto.
Envolto de olhares largos,
tenso, logo aflito.
Se me pensam perdido no inchaço,
teso, logo minto;
seja na lua ou nos lagos amargos
cobiço, mexo fundo

Se o povo é mentira, santo não desce;
descrevo, jogo. Resisto.
Se o canto é magia, o manto padece;
danço, logo excito.

(Guellwaar Adún - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 104-105)

Olhos flechados

Seus olhos flechados,
mundo regado a ensejos reprimidos,
minavam;
Tudo era inteiro, cheiro, zelo.

O odor dos seus pelos (medos, segredos)
penetrava os espaços oníricos de nossas vastidões
nos tremores mútuos,
enquanto n(u)s entregávamos, tragávamos...

Era fato, aquele sonho palpável.

A descoberta do oceano deixou a intenção aberta
avassalando anseios, preenchendo veios, desvelando a
segunda pele
           do seu monte de Vênus.

(Guellwaar Adún - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 101)

Ao poeta

Pós-Drummond, o suor de pausas, deslizes
e reentrâncias nos eroticuzinhos, se perdeu;
tudo virou bunda, coxa, boca, caralho, boceta,
fodança... masturbasamba.

Alheia, a lua ainda beija, com sua voz de prata,
as devassidões do mar.

(Guellwaar Adún - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 100)

Homenagem à trois

Vou fazer uma homenagem à trois.
se o papo esquentar e mandarem misturar,
grafitarei a orgia intelectual de Abdias,
Fanon e Aimè...
vai dar samba;
já os vejo brochas e assustados com meu
erotismo incubado,
descomprometido com o voyeurismo do
Grande Irmão.

Sem suas almas lavadas, perceberão o que
trago nos punhos...
Êta, quanto alvoroço. As luzes vermelhas
apagaram-se.

(Guellwaar Adún - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 99)

Vestido(a)

No meu cantinho de despir
Em claro breu
Saem as roupas
Repousa a fluida e amorfa essência
O amanhecer blinda
Reveste calças políticas
Lingeries sociais
Decotes ideológicos
Refaz vestimentas culturais
Traveste(i) cidadã

(Gabriela Ramos - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 96)

TPM

O desaguar avermelhado
(re)encarna a cada ciclo todas as dores do mundo
Sangra o sexo
Mas explode o peito de amores sem absorventes
Tensiona a Procura Miserável
Pelo motivo de cada lágrima
Treme Pelos Massacres raivosos
Por tudo e por nada despertados
Teme a Perda de Migalhas sentimentais
Transforma a Política Militar em íntimo sofrimento
Tenta Provocar Mortes mentalmente armadas em planos vis
Terroristas Paramentados de Marinha
Em sua cabeça, alvos desarmados
Sangue jorrado entre as pernas
Em periódicos estupros universais
Tudo à volta abusa um pouco
Todos cúmplices de uma violência hormonal

(Gabriela Ramos - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 92)

Irun

Torneia rosto, corpo e identidade
Se alia a parceiros de feminilidade
Atende a comandos de mãos próprias e alheias
Exceto o de se inclinar
Não se curva
Não esmorece
Frente à subserviência, se avoluma
Beleza transcendentemente crespa
A moda das lutas diárias
Tendências nas passarelas da resiliência
Da menina-mulher-da-pele-preta
Do menino-homem-dos-lábios-fartos
Rebeldes padrões que esterilizam diversidades
Subvertem a natureza
Duros ferros aquecidos que alisam fios
Acorrentam mentes
Ruins gentilezas formolmente amoníacas
Desfazem tranças
Entristecem nagôs ancestrais
A fé o regenera
Por sacro-navalhas, a queda
O Orí às águas entrega
Firma Eledá

(Gabriela Ramos - Ogum's Toques: Coletânea Poética, 2014, p. 91)

Ciranda dos pássaros

Enquanto eu dormia
Os pássaros lá fora
Dançavam ciranda

E aqui do lado de dentro
As paredes refletiam
A tinta soltando do reboco
Malcolm vigiava
Com arma em punho
Bob acendia um alívio
Tupac me seduzia

Enquanto eu dormia
Os pássaros lá fora
Dançavam ciranda

O menino-Homem
ou Homem-menino
Anoiteceu doce agarrado
Nos galhos do meu corpo
Nos tempos da modernidade
Já não temos vitrola
Mas a música nunca parou

Enquanto eu dormia
Os pássaros lá fora
Dançavam ciranda

O sol entrou pela fresta
As lembranças mosaicos
Passo a passo desenhados
Na estrada que liga vida-morte
Cada dia a mais e um a menos
Na ampulheta de quem sonha

(Elizandra Souza - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 88-89)

Ensaio sobre nós

Nossas afinidades
Tardes de preciosidades
suco de cacau com graviola
um samba de Cartola
ele fumaça, eu incenso
ele melodia, eu silêncio

Nossas contendas
Resolvemos com oferendas
Ervas de benzedura
Mordida na cintura
Lambida no pescoço
Esquecemos do almoço

Somos estações do ano
Períodos de estiagem
Épocas de chuva
Uma manhã ele me seduz
Uma noite ele me ama
Entre maracatus e blues...

(Elizandra Souza - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 86)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Horizontes Negros

Minha beleza não está à venda
No seu mercado negro.
Meu nome: risquei, com tinta preta,
Da sua lista negra.
Minha alma não cabe em sua igreja.

A música não está em meu sangue,
O ritmo não percorre minha veia,
Mas estão, contudo,
Em lugar mais profundo
Do que alcançam seus olhos
De colonial descoberta.

Tenho raízes onde a Humanidade começa
E guardo segredos desde o ventre
De uma memória ancestral
No entanto: presente
Que quando feita a verdadeira descoberta
Desaparecerá como fantasma
E ressurgirá,
Das cinzas maquinais,
Maior e melhor semente.

Fui o passado, serei o futuro.
Estou, pois, desde sempre, presente.
Nem tentem me apagar,
Não conseguirão me diluir.
Minha negritude agora pulsa em corações
Outrora colonizados por seu sangue azul.
E se um dia me foram trancadas as portas da história,
Hoje abro as do futuro,
Pois cada verso é um brado, de alegria
Por um mundo tão claro quanto escuro.

(Madiba do Brasil)

Crise do Preto-Óleo Brasileiro

Marcha a rua a marcha fúnebre
Reta, certa, seta, meta do progresso
Corta, carne, corta, corta, célere
Corta, corta, o preto-pobre-verde-amarelo abscesso.

Sangra a rua, verde e amarela,
Mancha o sangue vermelho-preto
A bandeira hasteada na ferida-favela:
Ordem, progresso e medo.
Ordem, progresso, medo.

Bem à frente, sempre acima,
O Exército das Pessoas de Bem:
Expurga da Nação o sangue que a contamina!
Corta, corta, preto, pombo, sujo, ninguém.

Enquanto avança a máquina movida a preto-óleo (vermelho)
Nas senzalas, há 500 anos, ecoa o silêncio
Com que o negro-bom-trabalhador se olha no espelho,
Branco alterego de si mesmo: venho, vejo, venço.

E roda a roda, rola a bola, toca, cúmplice, ao pé do artilheiro
A escolha inadiável, pro delírio da torcida, a artilharia:
Gol! Gol! Gol! Gol! 12 gols na rede do dia-a-dia,
12 corpos (negros, vagabundos) ao chão do terreiro.

É com imenso pesar, que das valas coloniais,
Anuncio do futuro, o retorno do Impossível:
O espectro guinal de um negro vagabundo – invencível!
Banhando de sangue Negro afro-corações imortais.

(Madiba do Brasil)

Negros

Negros que escravizam
E vendem negros na África
Não são meus irmãos

Negros senhores na América
A serviço do capital
Não são meus irmãos

Negros opressores
Em qualquer parte do mundo
Não são meus irmãos

Só os negros oprimidos
Escravizados
Em luta por liberdade
São meus irmãos

Para estes tenho um poema
Grande como o Nilo

(Solano Trindade)

Congo

Pingo de chuva,
Que pinga,
Que pinga,
Pinga de leve
No meu coração.
Pingo de chuva
Tu lembras a canção,
Que um preto cansado,
Cantou para mim,
Pingo de chuva,
A canção é assim.

Congo meu congo
Aonde nasci
Jamais voltarei
Disto bem sei
Congo meu congo
Aonde nasci…

(Solano Trindade)

Canto dos Palmares

Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio de Homero
e de Camões
porque o meu canto
é o grito de uma raça
em plena luta pela liberdade!

Há batidos fortes
de bombos e atabaques
em pleno sol
Há gemidos nas palmeiras
soprados pelos ventos
Há gritos nas selvas
invadidas pelos fugitivos…

Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de todas as raças
de mão fechada
contra todas as tiranias!

Fecham minha boca
Mas deixam abertos os meus olhos
Maltratam meu corpo
Minha consciência se purifica
Eu fujo das mãos
Do maldito senhor!

Meu poema libertador
é cantado por todos,
até pelo rio.
Meus irmãos que morreram
muitos filhos deixaram
e todos sabem plantar
e manejar arcos;
muitas amadas morreram
mas muitas ficaram vivas,
dispostas para amar
seus ventres crescem
e nascem novos seres.

Rainhas e escravas

Da janela do apartamento
vejo só barracos do morro
onde moram as rainhas
do carnaval
imponentes rainhas negras
riquíssimas de ritmo e de sexo
Rainhas por três dias alegres
escravas no resto do ano…

(Solano Trindade)

Mandinga

Isto é mandinga negra
Isto é mandinga

Teus olhos de mãe d’água
pregando lirismo
teus seios escondidos
em Vila Isabel

Teus lábios mestiços
falando em beleza
no ritmo do samba
nos pingos da chuva
que molham o meu rosto

lirismo + lirismo
= a lirismo
(vamos somar na poesia)
é preciso aumentar a poesia
é preciso crescer e multiplicar
poeticamente

(Solano Trindade)

Tristes maracatus

Baticuns maracatucando
na minh’alma de moleque
Buneca negra na minha meninice
de “negro preto” de São José
Nas águas de calunga
a Kambinda me inspirando amor
O primeiro cafuné no mato verde
Da campina do Bodé
Rum de amor de negra
Rumpi de desejo de mulata
Lê de realização cafusa
Sons de protestos
Num mundo de guerra
E de ódio

Criação de Olorum
O mais tolerante dos deuses
O mais pacífico
Dos criadores
O mais estético
Dos chefes de raça

Tristes maracatus
Em maracatus alegres
Que se vão distantes
Em ritmo calmo de congo
Em acelerado moçambique
Em toque de Kêto
De Jejê e de Angola
Maracatus meus…

(Solano Trindade)

Reencarnação

Eu nasci
No inicio do século
(Revolução operária)
Nasci no Bairro de São José
Recife Pernambuco Brasil

D. Micaela
Foi a parteira que me pegou
E anunciou o meu Sexo
Homem!

A minha mãe
Foi operária cigarreira
Da Fábrica Caxias
Nascida de índio
E africano

Meu pai
Foi sapateiro
Especialista em Luis XV
Nasceu de branco e africano
Sabia falar em nagô

Meu pai era preto
Minha mãe era preta
Todos em casa são pretos

Deformação

Procurei no terreiro
Os Santos D’África
E não encontrei,
Só vi santos brancos
Me admirei…

Que fizeste dos teus santos
Dos teus santos pretinhos?
Ao negro perguntei.

Ele me respondeu:
Meus pretinhos se acabaram,
Agora,
Oxum, Yemanjá, Ogum,
É São Jorge,
São João,
E Nossa Senhora da Conceição.

Basta Negro!
Basta de deformação!

(Solano Trindade)

Macumba

Noite de Yemanjá
negro come acaçá
noite de Yemanjá
filha de Nanan
negro come acaçá
veste seu branco abebé

Toca o aguê
o caxixi
o agogô
o engona
o gã
o ilu
o lê
o roncó
o rum
o rumpi

Negro pula
negro dança
negro bebe
negro canta
negro vadia
noite e dia
sem parar
pro corpo de Yemanjá
pros cabelos de Obá
do Calunga
do mar

Cambondo sua
mas não cansa
cambondo geme
mas não chora
cambondo toca
até o dia amanhecer

Mulata cai no santo
corpo fica belo
mulata cai no santo
seus peitos ficam bonitos

Eu fico com vontade de amar…

(Solano Trindade)

Baianinha

Baianinha
vatapá permanente
doce de coco
cafuné dendê
você veio na hora
quentinha
pra minha vida
trazendo o dengo
do que eu precisava.

Candomblé da minha madrugada
batendo em mim
que sou tambor creoulo
com patuá
envolvendo meu pescoço
com patuá
envolvendo meu pescoço
botando em minha boca
feitiço de Iansã.
Você veio agora
como a revolução de Cuba
me animar a vida

Você veio agora
como a libertação do Congo
me tocando pra frente
e fazendo esquecer
o tempo
e a velhice.

Você veio agora
fazer mutirão comigo…

(Solano Trindade)

Velho atabaque

Velho atabaque
quantas coisas você falou para mim
quantos poemas você anunciou
Quantas poesias você me inspirou
às vezes cheio de banzo
às vezes com alegria
diamba rítmica
cachaça melódica
repetição telúrica
maracatu triste
mas gostoso como mulher…

Triste maracatu
escravo vestido de rei
loanda distante do corpo
e pertinho da alma
negras sem desodorante
com cheiro gostoso
de mulher africana
zabumba batucando
na alma de eu…

Velho atabaque
madeira de lei
couro de animais
mãos negras lhe batem
e o seu choro é música
e com sua música
dançam os homens
inspirados de luxúria
e procriação
Velho atabaque
gerador de humanidade…

(Solano Trindade)

O canto da liberdade

Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos…
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes…
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais…
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos

(Solano Trindade)

Toque de reunir

Vinde irmãos macumbeiros
Espíritas, Católicos, Ateus.
Vinde todos os brasileiros.
Para a grande reunião.
Para combater a fome
Que mata nossa nação.

Vinde Maria Pucheria.
João de Deus. José Maria.
Anicacio. Zé Pretinho
Para a grande reunião
Para combater a malária
Que mata nossa nação

Vinde trapeiro, pedreiro.
Lavrador, arrumadeira.
Caixeiro, funcionário.
Combater a tuberculose
Que mata nossa nação.

Vinde irmãos sambistas.
Da favela. Da Mangueira.
Do Salgueiro. Estácio de Sá.
Para a grande reunião.
Combater o analfabetismo
Que mata a nossa nação.
Vinde poetas, pintores
Engenheiros, escritores.
Negociantes e médicos.
Para a grande reunião.
Combater o facismo
Que mata a nossa nação.

(Solano Trindade)

Genegro

Gemido de negro
Não é poema
é revolta
é xingamento
É abismar-se

Gemido de negro
é pedrada na fronte de quem espia e ri
É pau de guatambu no lombo de quem mandou
dar

Gemido de negro
é acampamento de sem-terra no cerrado
É punho que se fecha em black power

Gemido de negro
é insulto
é palavrão ecoado na senzala
É o motim a morte do capitão

Gemido de negro
é a (re)volta da nau para o Nilo

Gemido de negro…
Quem tá gemendo?

(Miriam Alves - Antologia da poesia negra brasileira: o negro em versos, 2005)

Oferenda

Que farei do meu reino: um terreno
no peito
onde pensei pôr minh’África,
a dos meus avós, a do meu povo de lá e que me deixam
tão sozinho?
Como sonhei falar minha mamãe África,
oferecer-lhe, em meu peito, nesta noite turva,
os meus pertences de vento, sombra e relembrança,
o meu nascimento, a minha
história e o meu tropeço
que ela não sabe, nem viu e eu sendo filho dela!
— Oh, mamãe, as minhas fraldas estão sujas de brancor
e ele cheira tanto!
Às vezes penso, em minha solidão, na noite turva,
que você me está me chamando com o tambor do vento.
Abro a janela, olho a cidade, as luzes me trepidam
e eu perco o condão de te achar
entre estes odores vários
e tanta dor de gente branca, preta, variada
gama e tessitura de almas, ânsias, medo!
Como sonhei falar, sozinho, à minha mamãe África,
e oferecer-lhe, em meu peito, nesta noite turva,
os meus presentes de vento, sombra e relembrança,
o meu nascimento, a minha história, o meu tropeço
que ela não sabe, nem viu e eu sendo filho dela!

(Oswaldo de Camargo - Antologia da poesia negra brasileira: o negro em versos, 2005)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Lírios

Fique aí
Na sala
Na sua
Eu aqui na minha
Porta fechada
Mundo em um quarto
Perpasso dimensões
Sou eu
Sendo mais
Em cores
Querencia
Não é carência
Tenho o que quero
E hoje eu quero
Na chuva
Na rua
No pasto
Do meu quarto
Faço sala de controle
Meus olhos
TV em cores
Ganhando mundos
Flores em pétalas
Jardim se fecha
Porta aberta
Nem mais uma pétala
Psiu!
Silenciam as flores
E partem os vinte amantes.

(Gonesa Gonçalves)

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Ecos da batida

Ecos da batida
Soltos pelo ar
A expressão rítmica
A nos unificar

“Omnirá”
Quebre os grilhões da diáspora
Unifique nossas vidas
Separadas pelo mar

Bate no coração a saudade
O canto espanta a tristeza
No balanço dos acordes
No ar, sou a liberdade

Levante a poeira
Deixe quebrar
Venha sambarregaear
Ao som de Omnirá

(Edson Robson Alves dos Santos - Cadernos Negros, volume 31)

A força da africanidade

No íntimo da palavra trabalho
Sinto a força da africanidade
Na coragem do povo negro
Ao transformar as opressões
No conhecimento da vida.

Sim, vivenciamos uma africanidade
Arraigada na humanidade
Ao acalentarmos um coração desesperado
Entre os conflitos culturais
Quando recebemos as proteções
Dos nossos ancestrais!

Logo, africanidade é negritude viva
Que dos seus ancestrais faz a história
Concentra os mistérios da vida
No tempo presente traz a vitória!

(Dirce Pereira do Prado - Cadernos Negros, volume 31)

Canto obscuro às raízes

Em Libreville
não descobri a aldeia do meu primeiro avô.

Não que me tenha faltado, de Alex,
a visceral decisão.
Alex, obstinado primo
Alex, cidadão da Virgínia
que ao olvido dos arquivos
e à memória dos griots Mandinga
resgatou o caminho para Juffure,
a aldeia de Kunta Kinte —
seu último avô africano
primeiro na América.

Digamos que o meu primeiro avô
meu último continental avô
que da margem do Ogoué foi trazido
e à margem do Ogoué não tornou decerto

O meu primeiro avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas, quem sabe, talvez, Abessole

O meu primeiro avô
que não morreu agrilhoado em James Island
e não cruzou, em Gorée, a porta do inferno

Ele que partiu de tão perto, de tão perto
Ele que chegou de tão perto, de tão longe

Ele que não fecundou a solidão
nas margens do Potomac

Ele que não odiou a brancura dos algodoais

Ele que foi sorvido em chávenas de porcelana
Ele que foi compresso em doces barras castanhas
Ele que foi embrulhado em chiques papéis de prata
Ele que foi embalado para presente em caixinhas

Despedida

Deixo o corpo, auê, ê.
Noutro campo
vejo os antigos.

Ergo a toalha
onde as cores são outras
(Lá fora gunga não chora).

Ergo espada com os antigos.
Noutro campo
aprendo o mesmo canto.

(Edimilson de Almeida Pereira)

Caderno de retorno

Pele radar que indexa
            um looping
            ao atabaque
            um anjo
            à sua queda
            Iracema
            à sua novela
alvo que incinera um atirador
            no teto

(…)

Para uso irrestrito a pele em desafio
            a todo gesto
coleção de selos que o vento
            dispersa da janela

(…)

A pele procura os naipes para
            entrar no jogo
mais se arroja quando desnuda
            o homem
            através do verbo

(…)

Pele não é o cárcere nem
            o texto
            o papel
            a retícula
            para roteiro em zoom
quiçá um mapa que muda enquanto viaja
            e se fixa quando
            escorregadia
                nos tece

(…)

Estou de volta a casa não para visitar
os carneiros da minha gente
uma vez mortos
                                   expostos.
O que espero deles não é carne
                                   mas raiz e errância.
A experiência acumulada sendo
            o último da classe
            o único entre os outros
            o suspeito número um
            a prova no fundo do poço
apodreceu para adubar minha vontade.

Numa paisagem, outra

o unguento e, às vezes,
a colônia de morte,
sangram através do pensamento, lâmina
que toca a jugular

se animal em pelo, se apenas
recipiente,
quem saberá? enquanto se esgueiram
refazem os modos de si

alguém que os interpreta
há muito não goza de confiança
por isso, os gritos
com que intenta mover as pedras

quem contesta o descendente
e as razões
que o fazem irmão da gazela
inimigo da febre?

não seremos nós, os que portam
a camisa sem idiomas,
nem as mulheres
a quem reservam o teto da casa
e nenhuma epígrafe

a contestação faz-se por si mesma
a jugular não se entrega ao braço
que desfere o golpe
e se esgota nesse gesto

não, o sacrifício não está no mel
que incendeia, de tempos em tempos,
a viagem dos parentes

as ondas que mudam por si mesmas
disseram adeus às certezas,
nós ainda não
(pelo menos aqueles que se julgam
primo dos primeiros)

como nos enfrentaremos sob a ordem
que tropeça?
mil sendas se abrem e a seiva do pai,
como o recém-nascido,
se perdeu num corpo maior

ninguém está lá, a não ser
quem te conhece e estranha, não
o charme de irmão,
não espere entendimento se ele fizer
um círculo na areia

não há cortes que expliquem
a paisagem anterior, nem a sombra, amanhã,
nos caules

o que se espraia da jugular
é um labirinto que conduz a outro e se algum
vestígio resta
é para dizer seu afastamento da origem

as leituras faliram
se o descendente insiste,
rasga os seres para os quais não temos
saúde

nesse deserto de alegrias, a herança
é o animal que saqueia o verbo
antes do sacrifício

(Edimilson de Almeida Pereira)

Ranhuras

Não há direção
no labirinto.
A vida e sua cárie
são exatas, no entanto.

Da outra margem
exploram o espelho
e me contam
o que permanece,
se me modifico.

Entro nessa direção
sem roteiros.
O que aí se mostra
são mapas
de outros mapas.

(Edimilson de Almeida Pereira)

Ebulição da escravatura

A área de serviço é senzala moderna,
Tem preta eclética, que sabe ler “start”;
“Playground” era o terreiro a varrer.

Navio negreiro assemelha-se ao ônibus cheio,
Pelo cheiro vai assim até o fim-de-linha;
Não entra no novo quilombo da favela.

Capitão-do-mato virou cabo de polícia,
Seu cavalo tem giroflex (radiopatrulha).
“Os ferros”, inoxidáveis algemas.

Ração poder ser o salário-mímino,
Alforria só com a aposenadoria
(Lei dos sexagenários).

“Sinhô” hoje é empresário,
A casa-grande verticalizou-se,
O pilão está computadorizado.
Na última página são “flagrados” (foto digital)
Em cuecas, segurando a bolsa e a automática:
Matinal pelourinho.

A princesa Áurea canta,
Pastoreia suas flores.
O rei faz viaduto com seu codinome.

— Quantos negros?  Quanto furor?
Tantos tambores… tantas cores…
O que comparar com cada batida no tambor?
________

“A escravatura não foi abolida; foi distribuída
entre os pobres”.

(Luís Carlos de OliveiraAntologia da poesia negra brasileira: o negro em versos, 2005)

Deslimites 10

(táxi blues)

eu sou o que mataram
e não morreu,
o que dança sobre os cactos
e a pedra bruta
— eu sou a luta.

O que há sido entregue aos urubus,
e de blues
         em
blues
endominga as quartas-feiras
— eu sou a luz
sob a sujeira.

(noite que adentra a noite e encerra
os séculos,
farrapos das minhas etnias,
artérias inundadas de arquétipos)

eu sou ferro, eu sou a forra.

E fogo milenar desta caldeira
elevo meu imenso pau de ébano
obelisco às estrelas.

eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!

leito de terra negra
sob a água branca,
sou a lança
a arca do destino sobre os búzios.

e de blues a urublues
ouça a moenda
dos novos senhores de escravos
com suas fezes de ouro
com seus corações de escarro.

eh tempo em deslimite e desenlace!
eh tempo de látex e onipotência!

eu sou a luz em seu rito de sombras
— esse intocável brilho

(Salgado Maranhão - Antologia da poesia negra brasileira: o negro em versos, 2005)

Fábula antiga

Outrora, quando os animais falavam,
Conta Bocage que um leão, um dia,
Achou na selva um quadro — ó ironia!
Em que um leão mãos de homem dominavam.

Viu a afronta que ali representavam
E apenas disse à selva que o envolvia:
— “Fosse o leão pintor e ver-se-ia
Se era o homem ou os leões que triunfavam…

Tende sempre presente, os que zombais
Dos que não têm a cor que vós julgais,
Por ser a vossa, às outras, superior,

O que o leão da história, após o insulto,
Disse consigo, olhando o quadro estulto,
E imaginai se o leão fosse o pintor…

(Rui de Noronha - poeta moçambicano)

Pós da História

Caiu serenamente o bravo Quêto
Os lábios a sorrir, direito o busto
Manhude que o seguiu mostrou ser preto
Morrendo como Quêto a rir sem custo.

Fez-se silêncio lúgubre, completo,
no craal do vátua célebre e vetusto.
E o Gungunhana, em pé, sereno o aspecto,
Fitava os dois, o olhar heróico, augusto.

Então Impincazamo, a mãe do vátua,
Triunfando da altivez humana e fátua,
Aos pés do vencedor caiu chorando.

Oh dor de mãe sublime que se humilha!
Que o crime se não esquece à luz que brilha
Ó mães, nas vossas lágrimas gritando?

(Rui de Noronha - poeta moçambicano)

Passas leve...

(a Jorge Netto)

I
Passas leve,
Levezinha,
Como a minha
Tentação.
Quem me dera
Tão ligeiro
Teu inteiro
Coração…

II
Passas rindo,
Confiada,
Doce fada
Do sertão.
Não te prendam
Nos caminhos
Os espinhos
Da ambição…

III
Vais correndo,
Vão cantando,
Vão saltando,
Brandos ais
Os teus seios
Negros, duros,
Como obscuros
Madrigais…

Quenguêlêquêze!... (Lua nova)

“Quenguêlêquêze!… Quenguêlêquêze!”…
Surgia a lua nova,
E a grande nova
— Quenguêlêquêze!…— ia de boca em boca
Traçando os rostos de expressões estranhas,
Atravessando o bosque, aldeias e montanhas,
Numa alegria enorme, uma alegria louca,
Loucamente,
Perturbadoramente…
Danças fantásticas
Punham nos corpos vibrações elásticas,
Febris,
Ondeando ventres, troncos nus, quadris…
E ao som de palmas
Os homens, cabriolando,

Iam cantando
Medos de estranhas vingativas almas,
Guerras antigas

Com destemidas ímpias inimigas
— obscenidades claras, descaradas,
Que as mulheres ouviam com risadas
Ateando mais e mais
O rítmico calor das danças sensuais.
“Quenguêlêquêze!… Quenguêlêquêze!…”
Uma mulher de vez em quando vinha,
Coleava a espinha,
Gingava as ancas voluptuosamente,
E diante do homem, frente a frente,
Punham-se os dois a simular segredos…
— Nos arvoredos
Ia um murmúrio eólico
Que dava à cena, à luz da lua, um que diabólico…

Carregadores

A pena que me dá ver essa gente
Com sacos sobre os ombros, carregadíssima!…
Às vezes é meio-dia, o sol tão quente,
E os fardos a pesar, Virgem Santíssima!…

À porta dos monhés, humildemente,
Mal a manhã desponta a vir suavíssima,
Vestindo rotas sacas, tristemente
Lá vão ‘spreitando a carga pesadíssima…

Quantos velhinhos já, avós talvez,
Dez vezes, vinte vezes, lés a lés
Num dia só percorrem a cidade!

Ó negros! Que penoso é viver
A vida inteira aos fardos de quem quer
E na velhice ao pão da caridade…

(Rui de Noronha - poeta moçambicano)

No cais

Há vibrações metálicas chispando
Nas sossegadas águas da baía.
Gaivotas brancas vão e vêm, bicando
Os peixes numa louca gritaria.

Escurece. Do largo vão chegando
As velas com a farta pescaria.
As bóias põem no mar um choro brando
De luzes a cantar em romaria.

E entretanto no cais as lides crescem.
Arcos voltaicos súbito amanhecem,
A alumiar guindastes e traineiras…

E ouve-se então mais forte, mais vibrante,
Os pretos a cantar, noite adiante,
Por entre a bulha e o pó das carvoeiras…

(Rui de Noronha - poeta moçambicano)

Grito de alma

Vem de séculos, alma, essa orgulhosa casta,
Repudiando a dor, tripudiando a lei.
Num gesto de altivez que em onda leva arrasta
Inteiras gerações de amaldiçoada grei.

Ir procurar, amor, nessa altivez madrasta,
Um gesto de carinho ou de brandura, eu sei?
Ao tigre dos juncais, duma crueza vasta,
Quem há que roube a presa? Aponta-me e eu irei!

Cruel destino o meu, que ao meu caminho trouxe
Na fulgurante luz do teu olhar tão doce
À mágoa minha eterna, a minha eterna dor.

Vai. Segue o teu destino. A onda quer-te e passa.
Vai com ela cantar o orgulho da tua raça
Que eu ficarei cantando o nosso eterno amor…

(Rui de Noronha - poeta moçambicano)

Surge et ambula

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.
Dormes! e o mundo avança, o tempo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E no outro tu dormes o teu sono infindo…

A selva faz de ti sinistro eremitério,
onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo.
A terra e a escravidão têm aqui o seu império
E tu, ao tempo alheia, ó África, dormindo…

Desperta. Há muito que no alto adejam negros corvos
Ansiosos de cair e beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, ó escrava sonâmbula…

Desperta. O teu dormir é mais do que terreno…
Ouve a voz do progresso, este outro nazareno
Que a mão te estende e diz – “Africa, surge et ambula”

(Rui de Noronha - poeta moçambicano)

Para um leque

Se eu lhe fosse depor, minha senhora,
Por entre estas mentiras cor de aurora
Uma verdade sã e proveitosa,
Chamava-lhe vaidosa!
E, faça-me favor,
Não encrespe esse olhar acostumado
Ao falso galanteio delicado
E a finezas de amor.

II

Eu sei perfeitamente que Vocência
Possui a verve, a fina inteligência.
Que eu… não admiro, e toda a gente adora,
Duma mulher doutora.
Portanto vai então
Achar-me pouco amável no que digo,
Mas, por fim, há-de concordar comigo
E dar-me até razão.

III

Senão Vocência que me diga, franca,
Para que serve numa folha branca:
“A senhora é rainha da beleza;
Em graça e gentileza,
Um cisne a flutuar
Num lago não a iguala. Encanta, prende,
Como grades de ferro, a luz que esplende
Do seu profundo olhar”?

Visão

Vi-te passar, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante;
Ias de luto, doce, tutinegra,
E o teu aspecto pesaroso e triste
Prendeu minha alma, sedutora negra;
Depois, cativa de invisível laço,
(o teu encanto, a que ninguém resiste)
Foi-te seguindo o pequenino passo
Até que o vulto gracioso e lindo
Desapareceu, longe de mim, distante,
Como uma estátua de ébano ambulante.

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

Quando eu morrer

Não quero! Tenho horror que a sepultura
mude em vermes meu corpo enregelado.
Se no fogo viveu minha alma pura,
quero, morto, meu corpo calcinado.

Depois de ser em cinzas transformado,
lancem-me ao vento, ao seio da natura…
Quero viver no espaço ilimitado,
no mar, na terra, na celeste altura.

E talvez no teu seio, ó virgem linda,
tão branco como o seio da virtude,
eu, feito em cinzas, me introduza ainda.

E no teu coração, pequeno e forte,
(ó gozo triste!) viva eu na morte,
já que na vida lá viver não pude!

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

A negra

Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,

Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.

Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;

Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.

Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.

Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

A minha cor é negra, indica luto e pena;

É luz, que nos alegra,
A tua cor morena.
É negra a minha raça,
A tua raça é branca,
Tu és cheia de graça,
Tens a alegria franca,
Que brota a flux do peito
Das cândidas crianças.
Todo eu sou um defeito,
Sucumbo sem esperanças,
E o meu olhar atesta
Que é triste o meu sonhar,
Que a minha vida é esta
E assim há-de findar!
Tu és a luz divina,
Em mil canções divagas,
Eu sou a horrenda furna
Em que se quebram vagas!…
Porém, brilhante e pura,
Talvez seja a manhã
Irmã da noite escura!
Serás tu minha irmã?!…

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

Serões de S. Tomé

Meus olhos são como a noite
em que astro nenhum flutua
mas se o teu olhar o fita
na noite desponta a lua

Se os escravos são comprados
ó branca de além do mar
homem livre eu, sou escravo
comprado por teu olhar

Meu olhar é retratista
ò minha doce miragem
senão diz-me porque tenho
no meu peito a tua imagem

Roubei-te o primeiro beijo
o segundo foi-me dado
o terceiro, francamente,
creio que me foi roubado

A neve que cai na serra
define tudo em redor
quem se afoita a amar as brancas
se da neve têm a cor

As noites para serem belas
precisam milhões de sóis
a ti, negra como as noites,
apenas te bastam dois

Um dia a espuma dos mares
ao ver em si meu amor
Foi dizer baixinho à praia
– a Vénus mudou de cor

A nossa terra é tão bela
duma beleza sem par
E por ser assim formosa
Fê-la sua amante o mar…

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

Eu e os passeantes

Passa um inglesa,
E logo acode,
Toda supresa:
What black my God!

Se é espanhola,
A que me viu,
Diz como rola:
Que alto, Dios mio!

E, se é francesa:
Ó quel beau negre!
Rindo para mim.

Se é portuguesa,
Ó Costa Alegre!
Tens um atchim!

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

Aurora

Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora
Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!…flor, que esta minha alma adora.

És a luz, eu sou a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.

Olha que esta paixão cruel, ardente,
Na resistência cresce, qual torrente;
É a paixão fatal que vem da morte.

É a paixão selvática da féra,
É a paixão do peito da pantera,
Que me obriga a dizer-te «amor ou morte!

(Caetano da Costa Alegre - poeta são-tomense)

Eu negro

Areia movediça na anatomia da miséria
Pano-pra-manga na confecção apressada de humanidade
Chaga escancarada contra o riso atômico dos ladrões
Espinho nos olhos do esquecimento feliz de ontem
Eu
Eu feito de sangue e nada
De Amor e Raça
De alegrias explosivas no corpo do sofrimento e mágoa.
Ponto de encontro das reflexões vacilantes da História
Esperança fomentada em fome e sede
Eu
A sombra decisiva dos iluminismos cegos
O câncer dos humanismos desumanos
Eu
Eu feito
De Amor e Raça
De alegrias incontroláveis que arrebentam as rédeas dos sentimentos egoístas
Eu
Que dou vida às raízes secas das vegetações brancas
Eu

(Cuti)

Sementes

Não procurem no vazio das cavernas
a marca primordial, a germinação.
Cavernas são cavernas.
Na onda se inscreve todo o princípio
as sementes da blasfémia e da redenção.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Esta viagem

Esta viagem não responde às minhas perguntas.

Trespassei o aço das certezas.
Heranças, devorei-as.

A etapa seguinte rasga a prévia cartografia
Toda a fronteira é um apelo à renúncia.

Perscrutei mares cidades sinais nas pedras papiros.

Ao encontro da linguagem da tribo azul
cada passo me afasta de um rito sagrado.

Esta caminhada decreta um tráfico sem remissão:
a fortaleza do sonho pela metamorfose das feridas.

Vítima da memória, nenhum deus me acolhe à chegada.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Fronteira

Trespassar é a sina dos que amam o mar.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

O cataclismo e as canções

Feliz o que de mim restar, depois de mim
Se uma só das canções cantadas
Viver além daquele que em mim agora canta.
Da hecatombe não salvaria contudo
Uma só das canções que cantei e canto.
Às entranhas do olvido
Antes roubaria o riso das crianças
E a idade do provérbio.

Assim aos vindouros
Intacto ofertaria o enigma da luz.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Para te encontrar

Para te encontrar levantarei os prumos.
Inventarei a casa nos mesmos rios
Para nos descobrir

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Versão de deserto

Trazido não sei por que apelos, urgências
Vieste impugnar o momento que me cerca.
Demora – conclamas – a clara voz em minha boca.

Peço-te porém que repares:
não agonizam dunas nestes campos.
Aqui não jazem ossadas sem registo
nem apodrecem espectros de
perdidas caravanas.
Nenhum trilho foi abandonado
e não reneguei
Não, não reneguei
o nome do pai do meu pai

O meu deserto é a vertical semente de um barco.
O areal (seu brilho de nada e de lago)
não é senão a metáfora de uma horta
talvez uma projectada cisterna.
Esta claridade nos olhos do griot cego
este reflexo que obscurece a luz do dia
não irradia de um céu empedernido —
a minha fome não é a maldição
do velho deus inclemente.
E todavia devora-me a cicatriz da penúltima batalha
e tenho por estigma
a memória de um longo fratricídio.
Mas estou aqui
sob este sol que alucina
a savana ao meio-dia.
Aqui, sob este toldo rasgado
onde envergo a sede dos meus ossos
e perduro sem jardim nem chuva
sem tambores nem flauta
sem espelhos,
companheira do tempo que amarra
as minhas veias ao umbigo do poço.

Não, nenhum trilho foi esquecido,
e venero o profano nome do pai do meu pai.

Lenta a vertigem vai esculpindo
os murmúrios de um rio incerto —
planto estacas
em redor da vigília dos meus mortos.
Não anuncio.
Tardo e não prenuncio reino ou abismo.
Não sou mensageira de vãos sacrifícios,
épicas derrotas, novos caminhos.
Aqui onde o inferno acontece
neste lugar onde me derramo e permaneço
inauguro a véspera da minha casa.
O meu silêncio franqueia
o umbral de qualquer coisa.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

A outra paisagem

Da lisa extensão dos areais
Da altiva ondulação dos coqueirais
Do infindo aroma do pomar
Do azul tão azul do mar
Das cintilações da luz  no poente
Do ágil sono da semente
De tudo isto e do mais –
a redonda lua, orquídeas mil, os canaviais –
de maravilhas tais
falareis vós.
Eu direi dos coágulos que mineram
a fibra da paisagem
do jazigo nos pilares da Cidade
e das palavras mortas, assassinadas
que sem cessar porém renascem
na impura voz do meu povo.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

A mão do poeta

Ao Fred Gustavo dos Anjos,
depois de ter lido Paisagens e Descobertas

O poeta, é sabido, conhece
o sentido da sua mão
e perdoa a bizarria
de crescer sozinha
com o impulso da ave
ou o fermento do pão

Porque ele sabe que a mão
o prende à raiz do chão
onde o rigor do seu“não!”
varre da casa a podridão

Por isso, se o poeta à praça traz
seus dentes caídos, a face desfeita
é para perscrutar no mastro
o pano que drapeja
e corrigir com a mão
a direcção do vento.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Quando o luar caiu

Quando o luar caiu e
tingiu de escuro os verdes da ilha
cheguei, mas tu já não eras.
Cheguei quando as sombras revelavam
os murmúrios do teu corpo
e não eras.
Cheguei para despojar de limites o teu nome.
Não eras.
As nuvens estão densas de ti
sustentam a tua ausência
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és.
Pedra a pedra encho a noite
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias
pedra a pedra
no teu tempo consumido.
As pedras crescem como ondas
no silêncio do teu corpo.
Jorram e rolam
como flores violentas.
E sangram como pássaros exaustos
no silêncio do teu corpo
onde a noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.

Súbito e transparente chegaste
quando falsos deuses subornavam o tempo,
chegaste sem aviso
para despedir o defeso e o frio,
chegaste quando a estrada se abria
como um rio,
chegaste para resgatar sem demora o princípio.
Grave o silêncio agarra-se ao teu corpo,
hostil o silêncio agarra-se ao teu corpo
mas já tomaste horas e caminhos
já venceste matos e abismos
já a espessura do obô resplandece em tua testa.
E não me bastam pombas dementes no teu rosto
não bastam consciências soluçante em teu rasto
não basta o delírio das lágrimas libertas.
Cantarei em pranto teu regresso sem idade
teu retorno do exílio na saudade
cantarei sobre esta terra teu destino de rebelde.
Para te saudar no mar e
na manhã dos cantos sem represas
saudarei a praia lisa e o pomar.
Direi teu nome e tu serás.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Afroinsularidade

Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações

engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras

Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas

Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas

E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes – cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.

E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d’ óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans

E aos relógios insulares se fundiram
os espectros – ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas

Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Sóya

Há-de nascer de novo o micondó –
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.

Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.

Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.

Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
lavar as trancas no leito ressuscitado.

Reabitaremos a casa, nossa intacta morada.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Descoberta

Após o ardor da reconquista
não caíram manás sobre os nossos campos.
E na dura travessia do deserto
Aprendemos que a terra prometida
era aqui.
Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas indómitas a desbravar.
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

A casa

Aqui projectei a minha casa:
alta, perpétua, de pedra e claridade.
O basalto negro, poroso
viria da Mesquita.
Do Riboque o barro vermelho
da cor dos ibiscos
para o telhado
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
O quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.
Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
Recortada contra o mar.
Aqui.
Sonho ainda o pilar –
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Zálima Gabon

À memória de Katona, Atúpa Grande
e Atúpa Pequeno
À Makolé

Falo destes mortos como da casa, o pôr-do-sol, o curso d’água.
São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova
a patética sombra, seus ossos sem rumo e sem abrigo
e uma longa, centenária, resignada fúria.

Por isso não os confundo com outros mortos.

Porque eles vêm e vão mas não partem
Eles vêm e vão mas não morrem.

Permanecem e passeiam com passos tristes
que assombram a lama dos quintais
e arrastam a indignidade da sua vida e sua morte
pelo ermo dos caminhos com um peso de grilhões.

Às vezes, sentados sob as árvores, vergam a cabeça e choram.

Erguem-se depois e marcham com passos de guerrilha
Não abafem o choro das crianças, não fujam
Não incensem as casas, não ocultem a face
Urgente é o apelo que arde por onde passam
Seus corações deambulam à sombra nas plantações.

Por isso não os confundo com outros mortos
apaparicados com missas, nozados, padres-nossos.

Por remorso, temor, agreste memória
Por ambígua caridade, expiação de culpa
aos mortos-vivos ofertamos a mesa do candjumbi
feijão-preto, mussambê, puíta, ndjambi.

Para aplacar sua sede de terra e de morada
Para acalmar a revolta, a espera demorada.

Eles porém marcharão sempre, não dormirão
recusarão a tardia paz da sepultura, o olvido
acesa sua cólera antiga, seu grito fundo
ardente a aflição do silêncio, a infâmia crua.

Eis por que vigiam estes mortos a nossa praça
seu é o aviso que ressoa no umbral da porta
na folhagem percutem audíveis clamores
a atormentada ternura do sangue insepulto.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Anti-epopeia

Aquele que na rotação dos astros
e no oráculo dos sábios
buscou de sua lei, e mandamento
a razão, a anuência, o fundamento

Aquele que dos vivos a lança e o destino detinha
Aquele cujo trono dos mortos provinha

Aquele quem a voz da tribo ungiu
chamou rei, de poderes investiu

Por panos, por espelhos, por missangas
por ganância, avidez, bugingangas
as portas da corte abriu
de povo seu reino exauriu.

(Conceição Lima - poeta são-tomense)

Negritude

Ouço o eco gemendo,
Os gritos de dor,
Dos navios negreiros.
Ouço o meu irmão,
Agonizando a fala,
Lamentando a carne
Pisada,
Massacrada,
Corrompida.

Sinto a dor humilhante,
Do pudor sequestrado,
Do brio sem arbítrio,
Ao longe atirado,
Morto e engavetado,
Na distância do tempo.
Dói-me a dor do negro,
Nas patas do cavalo,
Dói-me a dor dos cavalos.

Arde-me o sexo ultrajado
Da negra cativa,
Usada no tronco,
Quebrada e inservida,
Sem prazer de sentir,
Sem desejos de vida,
Sem sorrisos de amor,
Sem carícias sentidas,
Nos seus catorze anos de terra.

Vaga-lume

A noite
— pálida Noite —
são nossos traços
negando fogo.
São gritos de arcanjos
descabelados
violados por Orixás.
Ah Noite!
trago-te oferendas
de palavras
das quais se cantará a vida
dos tombadilhos de América.

(Abelardo Rodrigues - Axé: antologia contemporânea da poesia negra brasileira, 1982)

Negro forro

minha carta de alforria
não me deu fazendas,
nem dinheiro no banco,
nem bigodes retorcidos.

minha carta de alforria
costurou meus passos
aos corredores da noite
de minha pele.

(Adão Ventura - Axé: antologia contemporânea da poesia negra brasileira, 1982)

Reflexão

O poema reflete
principalmente no escuro
E quando reflete, insone,
apetrecha o movimento
da luz.

Não a luz que nasce
a cada dia
em qualquer poente.
Não a luz feita
sob o canhão e o crucifixo
Não a luz dos seis dias…

mas aquela
de Totens
de Olorum.

(Abelardo Rodrigues - Axé: antologia contemporânea da poesia negra brasileira, 1982)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Distúrbio psicossomático, aliás, banzo.

Tem dias que o coração aperta,
e uma tristeza vai moendo as entranhas,
e uma moleza esbagaça os planos
e uma certeza estraga o amanhã.
Vou me curar na praia de Copacabana.
E sentado ali, por finito tempo,
fico olhando aquela merda de oceano Atlântico
que interrompeu o meu destino.

(Éle Semog - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 83)

Gentinha chinfrim

O Brasil é um país
tão racista, mas tão racista,
que não se passa um dia
nessa terra,
sem se encontrar algum branco
com a boca cheia de negros,
contando estórias de melhor amigo,
expondo xenofobias, curtindo samba
transando com pretas e pretos,
destilando ódios, comendo feijoada,
se lambuzando de acarajés,
justificando estatísticas, bebendo cachaça,
detonando nossas conquistas e as cotas
e enfartando por preconceitos.

(Éle Semog - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 80)

Linguagem dos sinais

Não se surpreenda
com a minha mudez.
O meu olhar lacrimejante
implica a um só tempo
discurso, acusação e sentença.

(Éle Semog - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 79)

Descobertas

Quando eu buscar
os últimos segredos do teu corpo
indo dos teus lábios verticais
até chegar entre os dedos dos teus pés,
é quase certo o céu querer
trocar estrelas comigo
E eu te digo. Direi não.

(Éle Semog - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 78)

Haikai do amor

Rasgado o lençol
Teu gozo
No vazio de mim

(Dú Oliveira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 73)

Desconstrução

Quebra-se o jarro
Criam-se os cacos

(Dú Oliveira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 69)

Tempo ê!

Os processos seguem teu passo
Inexorável
As caminhadas duram de acordo contigo
A chegada acontece ao teu comando
Até o jardim, que somos

Tempo ê!

Avançamos sob geadas, secas, granizos e insetos
Persistimos sob temporais, pragas e ervas daninhas
E no teu ordenamento

Florescemos em todas as cores do arco-íris

(Daniela Luciana Silva - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 61)

Na mata

Andando na mata
o caçador me flechou
Ponta funda e franjada chegou à alma

Arrancar, separar, descolar
foram verbos vãos e cruéis que articulam dor
Recuei
Desespero, impotência, sobressaltos
Peito borbulhando em sangue, nem o rio me valeu
Pensei
Menos mágoa é deixar que vá se soltando
nas águas implacáveis do tempo
Vencerei
Correnteza, banho de cachoeira, folhas
orações, canções de fé
Suspirei
Só me valeu a mão do caçador
puxando a ponta da flecha sem misericórdia
Sangrei
Na beira do rio tive que olhar nos olhos
quem me curou, quem me feriu
Chorei

(Daniela Luciana Silva - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 59)

Abraço de casa

muito antes que eu chegasse ou soubesse
os braços da Casa
se abriram a esperar

a mão
me tocou em pleno afeto
ainda no caminhar para a mata

antes que piasse o chão sagrado
o coração
já pulsava em minha volta

os olhos
me seguiam atentos

eu não encontrei... só agora, sei
fui encontrada

vozes e olhares me chamaram

fui e pensava que chegava
já estava, não sabia:
sentia

a Casa me acolheu
num abraço infindo
ao primeiro passo
adentro

(Daniela Luciana Silva - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 57)

Ancestralidade

Sobre a minha pele de cágado
afloram veios ancestrais,
lâminas vívidas cortantes.

Um dia escorri da ladeira.
Paralelepípedos negro-azeviche
faiscaram do chão:

Só aí entendi vida,
pedreiras,
levantes

e o "morrer para germinar"

(Ari Sacramento - Ogum's Toques: Coletânea Poética, 2014, p. 55)

Linguística de Corpora

Meto a langue
em qualquer parole,
desde que encarne
nos sulcos de qualquer competência
atos, sinuosos, de fala de vida.
Recuso autópsias morfossintáticas.

Neurastênico, desisti
sin-,
dia-,
pan-:
matei Chrónos!
Vitimei cada algarismo dos séculos romanos!

Quero agora mêta-sincronismo.
Sadomasoquismo sintático!
vou reger de perto
objetos diretos "alterados" e
os indiretos, depravados...

Só experimento
africadas
palatalizadas
quando, líquidas, confusas...

Só não me falem dos tópicos selvagens,
coloniais de vastos portugais!

(Ari Sacramento - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 52-53)

Poema perdido

A Diogo Lessa

O cu da musa te deslinda, à pele,
invagina o equilíbrio:
- Não adiantará louvar-me,
Cativo!

- Meus lábios logo torcerão o falo soluçante...
- Pronto! Laudo médico:
"Asfixia fendo-peniana: fagocitose!"
O povo na rua:
"- Morreu de cul-pa"

Eis agora, a memória do vitimado
no Livro de Atos:
- Ó embebido ululante, fal(h)o,
o meu verso é pra t'engolir.

(Ari Sacramento - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 50)

Cura

Só aceito cura das flores de meu pai!

aos Robins,
intelectuais orgânicos,
feminismos burgueses, o meu não!
Todos Hoods.

Vou é ter com as filhas de Oyá:
tabuleiro,
vida...
acará

(Ari Sacramento - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 49)

Orações insubordinadas

Quando o dizer não se aquartela em palavras,
o amor faz samba, de terno e de saia
e obriga a voz, rouca e esfaimada
a puxar pelos braços, cinturas, pernas
tesão e saudade.

(Ari Sacramento - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 48)

Rediáspora

os refluxos gástricos e a anemia falciforme que quase ninguém quer estudar
o sangue O positivo que você não doa porque é testemunha de jeová
essa vogal anasalada por demais e essa mania de esquecer os plurais
a roupa branca de sexta, eu sei, você é ateu mas respeita a tradição
a caixinha que sua mãe coordenou para comprar a primeira geladeira duplex nos anos 70
esse acarajé que se impõe à sua vontade ao cair da noite
o medo de varrer para a porta da rua
a vassoura de ponta a cabeça por trás da porta
a bolsa que não pode ficar no chão
o seu banzo que de vez em quando chamam de depressão
o legado da escravidão
e esse boicote disfarçado de preguiça
essa lista não acaba nunca...
volta pro mar,
oferenda!

(Alex Simões - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 44)

Oxalá seja a verdade ou haicai nietzscheano

não dá mesmo para acreditar
num deus que não saiba dançar.
seja Alá, como f(l)or.

(Alex Simões - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 41)

quilombo in verso

bem no meio da marinha do brasil,
atrapalhando a segurança dos naval,
está o Quilombo Rio dos Macacos.

não seria o contrário?

(Alex Simões - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 40)

In: ___ desejado

nas estradas que percorro
aprendi a olhar nos olhos
manco mestiço mefisto
                                                     eu olho

fora do meu próprio umbigo
dentro do teu coração
digo o que quero e não peço
                                                     perdão

digo de cor o que sente
sei das palavras um tudo
mesmo daquelas que servem
                                                     de escudo

inda que chegue em farrapos
e não queira receber
a minha imagem desmonta
                                                     você

(Alex Simões - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 38)

Leo e Christopher

[dorme e derme
sob-sobre a outra
depois do sexo-mar
do sexamor]

dizem que são
o efebo e o amante
não são gregos
são negros

um banto
um preto mina
revistados em perguntas
em Vila Boa, Vila Bela, Vila Rica

casulo de dois
nas ilhas, nos fortes
ar-riscam o canto
de dentro e beira-marinho

o risco de Leo e Christopher
no palanque, na pista de dança

(Alex Ratts - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 35)

cada lado da janela

um corpo se esgueira
megafone
sirene
outros, vários, muitos

o poeta-colina com o olho antecipado
faz o verbo, o substantivo
a razão-instrumento
quer saber se é um gueto, um levante

quando a janela deixa
imagina-se que o sarau é preto
o corpo-síncope que estava no terreiro
recebe a luz na sala

quatro lugares em cada urbe
dez metrópoles esquadrinhadas

esgueirado corpo
sincopado corpo

uma carta de liberdade
em cada lado da janela
traz um poema entrelinhado

(Alex Ratts - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 30)

quatro mulheres que eram mais

quatro mulheres que eram mais

de terra
de mar
de rio
de vento
e mais

quatro mulheres que eram

de lama
de mangue
de algas
de fogo
e mais

(Alex Ratts - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 29)

ébano e púrpura

a suspensão do corpo
ébano e púrpura
nas ruas
na pista
nas salas
no palco

se eu for essa rua, essa ladeira
me atravesse
se eu for esse palco, essa pista
dance

se você for esta sala
de reuniões
de aula
eu converso, eu estudo

se você for aquele livro
eu leio, eu anoto

se você for suspenso
nós o alcançaremos com a mão
e dançamos
na superfície que nos resta
púrpura e ébano

(Alex Ratts - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 28)

Poema primeiro

Do fundo do meu corpo apodrecido
(da vida negra que me foi dada)
Surge em meio aos vermes devoradores
Uma rosa também de cor preta
Que (re)compõe os meus órgãos
Massacrados por botas brancas
E com respingos de sangue.

(Lidiane Ferreira)

Quadrilátero

Vazio...
Há água e comida
Mas não há fome nem sede...
Muito menos felicidade.
O que há são apenas rabiscos
Versos
Borrões cor de sangue
Nos muros e papéis brancos
Da vida que me encarcera.


Estações

Floresci.
Nos vincos mais sutis
da palavra.

Desponta em meu corpo,
rosas, margaridas, Maria.
Que não se fecham em vergonhas
Ao toque do perfeito-amor.

A pele Pétala orvalhada
por suores e gozos
apenas aguarda, em arrepios.

Enquanto o tempo tece
no alvorecer de beijos
um doce lampejo de primavera.

(Patrícia Maria)

Abayomi

Hoje Sou a boneca que nunca tive.
Não só pela falta do papel de comprar o todo,
Mas por não haver no mundo dito mundo
mãos capazes de reproduzir beleza tão rara, implástica.

Por não existir entre os homens ditos homens
Tecelã com a coragem de rasgar do intimo esgarçado
a matéria-prima necessária para redesenhar a angústia
pintada no rosto de suas crias.

(Patrícia Maria)

Aspiração

Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas

Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar

Ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos

Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
e a alma entregue à fé
ainda a dúvida

E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado

Adeus à hora da largada

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

(Agostinho Neto - poeta angolano)

Campos verdes

Os campos verdes, longas, serras, ternos lagos
estendem-se harmoniosos na terra tranquila
onde os olhos adormecem temores vagos
aceso mornamente sob a dura argila,

seca, como outrora mingou a doce esperança
quente, imperecível como sempre o amor
sacrificada, sangrada na lembrança
do esforço bestial do látego opressor.

Em campos verdes, longa serras, ternos lagos
refulgem ígneas chamas, rubros rugem mares
cintilados de ódio, com sorriso em mil afagos

São as vozes em coro na impaciência
buscando paz, a vida em cansaços seculares
nos lábios soprando uma palavra: independência!

(Agostinho Neto - poeta angolano)

Não me peças sorrisos

Não me exijas glórias
que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas

Não me exijas glórias
que sou eu o soldado desconhecido
da humanidade

As honras cabem aos generais

A minha glória
é tudo o que padeço
e que sofri
Os meus sorrisos
tudo o que chorei

Nem sorrisos nem glória

Apenas um rosto duro
de quem constrói a estrada
pedra após pedra
em terreno difícil

Um rosto triste
pelo tanto esforço perdido
— o esforço dos tenazes que se cansam
á tarde
depois do trabalho

Uma cabeça sem louros
porque não me encontro por ora
no catálogo das glórias humanas

Não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei-de passar

Mas hei-de encontrá-los
e segui-los
seja qual for o preço

Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira

E terei para ti
os sorrisos que me pedes.

(Agostinho Neto - poeta angolano)

Boogie-Woogie

Canta, Calloway
geme os teus sons roucos
que se vão estrangular na
vácuo da vida

Canta, Armstrong
grita em músicas alegres
tuas finais de choro.

Canta, Robeson
tua música ambígua
triste, alegre, triste.

Saxofones,
clarinetes de Harlem

África
multidões, cantai!
Contai a vossa história
em audazes ritmos
de antifonias soluçantes.

Cantai
mostrai-me os fragmentos
de corações quebrados
nas síncopes musicais
captadas
das florestas do Congo.

Cantai
vossos ritmos
respirados ao luar
quentes como a luz sensual
das fogueiras
tristes como o vosso drama.

Entoai
vossas orgias de sentimento
história triste duma raça.

Ó mágicos do som,
contai a nossa história.

(Agostinho Neto - poeta angolano)

Civilização ocidental

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

(Agostinho Neto - poeta angolano)

O caminho das estrelas

Seguindo
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
sobre a onda
sobre a nuvem
com as asas primaveris da amizade

Simples nota musical
indispensável átomo da harmonia
partícula
germe
cor
na combinação múltipla do humano

preciso e inevitável
como o inevitável passado escravo
através das consciências
como o presente

Não abstrato
incolor entre ideais sem cor
sem ritmo entre as arritmias do irreal
inodoro
entre as selvas desaromatizadas
dos troncos sem raiz



Mas concreto
vestido do verde
do cheiro das florestas depois da chuva
da seiva do raio do trovão
as mãos amparando a germinação do riso
sobre os campos da esperança

A liberdade nos olhos
o som nos ouvidos
das mãos ávidas sobre a pele do tambor
num acelerado e claro ritmo
de Zaires Calaáris montanhas luz
vermelha das fogueiras infinitas nos capinzais violentados
harmonias spiritual de vozes tamtam
num ritmo claro de África

Assim
o caminho das estrelas
pela curva ágil do pescoço da gazela
para a harmonia do mundo.

(Agostinho Neto - poeta angolano)

Poema

Apetece-me escrever um poema.

Um poema fechado dentro de si
para ser compreendido
apenas
pelos passarinhos que chilreiam lá fora
sobre as três árvores
da minha única paisagem;
para ser entendido
pela canção da seiva
circulante no verde das ervas
do caminho áspero da encosta;
e pelo brilho do Sol
e pelo caráter íntegro dos homens.

Um poema que não sejam letras
mas sangue vivo
em artérias pulsáteis dum universo matemático
e sejam astros cintilantes
para calmas noites
de invernos chuvosos e frios
e seja lume para acolher gazelas
que pastam inseguras
nos acolhedores campos da imensa vida;
amizade para corações odientos
motor impelindo o impossível
para a realidade das horas;
cântico harmonioso para formosura dos homens.

Um poema
(ah! quem comparou a África a uma interrogação cujo ponto é Madagascar?)
Um poema solução
resolvendo a curva interrogativa da imagem
em linha reta da afirmação;
e a beleza das florestas virgens,
a precisão da engrenagem da existência
o som fantástico do trovejar sobre pedras,
os cataclismos fluviais
pendentes sobre as frágeis canoas do rio Zaire,
o claro arrebol dos olhos dos homens.