sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Onde o espelho?

Para minhas irmãs negras

Este cabelo que lhe vai liso sobre a carapinha,
é o simulacro infeliz do que não és.

(Ao vestir-se com a pele do inimigo
o que de ti silencia e se perde?
Quantos animais conheces
que assim o fazem senão para reagir?)

Este cabelo pesa desfeito sobre sua carapinha.
Veste-a como um manto impuro
abafando o preto caracolado
sobressi dobrado:
filosófico.

Os fios se endurecem como cavalos açoitados,
e bradam da morbidez desta couraça
que te mascara branca.

Este cabelo requeimado e grotesco
sepulta o que em ti há de mais belo.
A dobra também é uma forma
de Ser.

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 145)

Negridianos

Para Cuti, Limeira e Guellwaar Adún

Há uma linha invisível
lusco-fusco furioso dividindo as correntezas.
Algo que distingue meu pretume de sua carne alva
num mapa onde não tenho territórios.

Minha negritude caminha nos sobejos,
nos opacos por onde sua luz não anda,
e a linha se impõe poderosa,
oprimindo minha alma negra,
crespa de dobras.

Há um negridiano meridiando nossas vidas,
ceifando-as no meio incerto,
a linha é invisível mesmo:
mas nas costas ardem,
em trilhos rubros,
a rota-lâmina destas linhas absurdas que desenhas
enquanto eu não as enxergo.

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 143)

Sometimes

Às vezes é um vento mais forte
e ele vem de longe, tangendo as colinas
E as tardes se emancipam de mim,
como se fossem feitas de puro desejo.

Um azul intenso devora meus dedos
e os olhos, inteiros, são de oceano e vão
e eu estou perdida: não há portas
mas as chaves persistem,
pendendo de minhas mãos.

Um vento que me fala em uma outra
língua
e, ainda assim, toda me devora,
e não há apelo,
e não há distância que o coloque de volta:
entra pelos meus cabelos
e faz deles sua mais perfeita morada.

Um vento, e eu de todo exilada.
Um vento, e eu desfeita,
calada.
Um vento, e, pobre de mim,
sou toda feita de Água.

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 140)

Poema-ebó

(pelo 20 de Novembro)

Dono das encruzilhadas,
morador das soleiras das portas de minha vida,
Falo alto que sombreia o sol:
Exu!

Domine as esquinas que dobram
o corpo negro do meu povo!
Derrama sobre nós seu epô perfumado,
nos banha na sua farofa
sobre o alguidá da vida!

Defuma nossos caminhos
com sua fumaça encantada.
Brinca com nossos inimigos,
impede, confunde, cega
os olhos que mau nos vêem.

Exu!

Menino amado dos Orixás,
dou-te este poema em oferenda.
Ponho no teu assentamento
este ebó de palavras!

Tu que habitas na porteira de minha vida,
seja por mim!
seja pelos meus irmãos negros
filhos de tua pele ébano!
Nós, que carregamos no corpo escuro
os mistérios de nossas divindades,
te vemos espelhado nos nossos cabelos de carapinha,
nos traços fortes de nossas faces,
na nossa alma azeviche!

Mora na porteira de nossa vida,
Exu!
Vai na frente trançando as pernas dos inimigos.
Nos olhe de frente e de costas!

Seja para nós o que Zumbi foi em Palmares:
Nos Liberta, Exu,
Laroiê!

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 138-139)

Aborto, um direito só meu

Amei Gilberto, Miguel, Roberto
Arrebatadamente, sonhos de amor primeiro
E tive Lia,
Melanie,
Alex.
Amei Paulinhos (foram dois), Jorge, Vilela
Amores confusos e tumultuados
Delírios de amor e carne.
E tive Isabela,
Ágata,
Mel
Fui amado Steve (meu amor canadense),
Toni (amor manso como o que) e tive
Deidre,
Ayô e Romeu.
Pais e Filhos que nunca se conheceram.
Aborto... um direito só meu.

(Lia Vieira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 136)

Curió

Ele era sempre sorriso e riso
E gargalhadas escancaradas.
Dançava samba de roda, jogava capoeira,
animava bailes.
O cabelo bem cometido sob a leve camada de óleo
Os sapatos de um engraxado absoluto,
o brilho retumbante.
A tranqüila camisa de seda.
No pescoço, a conta grossa de aço.
Simpatia e adjacências. Mútua reciprocidade.
Curió de Vila Isabel. Gostavam dele. Ele de todos.
De pé ele estava, ali na parada de ônibus:
A viatura se aproxima.
"Abra os bolsos! Vire de costas! Mostre as mãos!"
Alguns protestos. O policial se redobrou.
"Entre na viatura"...
Curió, o rosto anoitecido, retrucou:
Nestas terras seu moço, nunca ninguém ousou
nenhuma afronta sem troco
nem agravo sem resposta.
A lei chamou outro da lei.
Tiros, gritos, correria...
O Curió calou o canto do encanto.
Só o sussurro das asas
Em sumida revoada.
Assassinato diário de pássaros.

(Lia Vieira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 132)

Iiiihh! Enjoei!

Ora vento, ora brisa, ora vendaval!
Ora bikinis, ora burca!
Ora eu, ora ela!
Ai ai ai ai! Cansei!
Hoje quero ser Alberta,
Uma filha de Ossain, rica e bela;
Decidida. Iluminada. Resolvida.
Rara. Não vira no santo à toa.
Com ela é preto no branco e branco sobre todas as cores.
Quero ser responsável, estável, imutável, incorruptível.
Quero ser Alberta.
Mesmo que às vezes me sinta Betinha.
E queria ser apenas uma menina
sem nenhum compromisso.

Ai ai, Betinha minha,
moça das folhas,
deixe espaço para quando eu queira voltar a ser Julinha.

(Júlia Couto - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 128)

Na sedutora noite preta

Preparei-te o jantar.
Desta vez, não resmunguei.
Quis fazer esse papel.
Não me tirou o brio,
tampouco o dever de banhar-me para ti;
fiz questão disso, como tantas mulheres.
Nada me difere das amigas apaixonadas
Que se rasgam de amor
Dos suspiros e olhos revirados
Até o tremular de emoção ao ouvir sua voz rouca na minha nuca
Preparei o jantar e o coração
E não me envergonho ou me arrependo.
Sou muito mulher pra ser sua e ser minha até o talo,
para ser feliz aos bocados
Aproveitando cada garrafada, cada bebericar de vinho,
fazendo feriado e dia santo das suas piadas,
tirando férias pro nosso suadouro prazer.
Preparei-te o jantar e me aproveitei de você;
te usei nesta noite como em tantas outras,
mas esta seria diferente
Seria apenas o "nós dois" numa noite negra como eu
Com um luar mais brilhante
que meus olhos no seu corpo em êxtase
Aaaahhhh!!!
Amanhã tiro folga e não cozinho pra ninguém!
Faço greve e faço pose até a próxima sedução.

(Júlia Couto - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, 125)

Bângala

Quando vou para o Bângala, onde morou Caymmi,
nasceu Luís Gama
Passo por Santana, Independência e:
Lama desfraldada como flâmula.

Gente, vaga gente, vagas
Pele, ossos, fumaças sem afagos
Entre sucatas e indecências
Contraponto entre Santana e Independência...

Carne, prato exposto, putrefato
Mercado vivo, sociedade de araque
Liberdade, dignidade, só boato
Tudo se resume ao trasgo do crack
Esqueléticas damas, dissolutas
Quase todas negras, é claro
Imagens vagantes, mortas, quixotescas não raro
Vistas apenas como putas
Os outros, catadores, reciclam a vida em alumínio, papel
Breves furtos, todos brincam
Sob a angústia do mesmo céu

Quando vou para o Bângala, meio demente
Onde morou Caymmi, nasceu Luís Gama
Transito nesta irônica antítese - Independência - de tantos
dependentes
E passo pelo quase fim da raça humana.

(José Carlos Limeira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 121)

Em Tanto ao Mar foram docas, grutas, locas

Buscando te encontrar
Agora refaço planos, cometidos tantos enganos
A nau segue seu rumo, navegar, navegar
Nosso oceano não é mediterrâneo
Nem será pacífico
talvez um tanto índico e indico
novos rumos e faróis, fronteiras, guerras e sementes
quero esse odor de velas içadas
possuo genoas e bujas todas infladas
nem sei se bombordo é mesmo bom
quem sabe boreste seja a guinada
sobre o atol dos teus lábios dos quais pouco provo
ao navegar me renovo e me lanço ao oceano atlântico
de novo desejo, e descubro outras enseadas
numa baía secreta e repleta de teus beijos!

(José Carlos Limeira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 120)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO SETEMBRO

Registros da edição de setembro do Sarau Enegrescência, com recitais poéticos e as apresentações da poeta Luz Marques, do Coletivo Boca Quente, do escritor Fábio Mandingo, lançando o seu livro 'Muito como um Rei', e do poeta Gioavane Sobrevivente, lançando o seu CD 'Melanina'; além do Coletivo Pretas Empreendedoras e outros expositorxs apresentando belos trabalhos artesanais. Agradecemos a presença de todxs e já convidamos todxs para a próxima edição no dia 24/10.







REGISTROS DA III MARCHA INTERNACIONAL CONTRA O GENOCÍDIO DO POVO NEGRO - 24/08/2015

Registros da III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, realizada no dia 24/08/15 e organizada pela campanha 'Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta'. O Projeto Enegrescência esteve presente, pois não dissociamos a literatura do ativismo político: a literatura negra traz em evidência as vozes negras invisibilizadas ou desumanizadas pela sociedade e pelo racismo institucional. As vozes dos nossos mortos estão presentes em todo texto literário preto e de resistência. #ReajaOuSeráMortx

REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO AGOSTO

Registros da edição de agosto do Sarau Enegrescência, na Casa de Angola na Bahia, com a presença do poeta Giovane Sobrevivente lançando o seu novo CD 'Melanina'. Agradecemos ao Giovane e todas as presenças.



REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO JULHO

Registros da edição de julho do Sarau Enegrescência, na Casa de Angola na Bahia. Além dos recitais poéticos, tivemos a presença do grafiteiro, ilustrador, poeta e atual conselheiro do Conselho Municipal de Cultura da Cidade do Salvador (Artes Visuais) Zezé Olukemi, que bateu um papo sobre a sua trajetória de vida e sobre o trabalho do graffiti. Como esta edição foi em protesto à proposta de redução da maioridade penal, exibimos o documentário "PEC 171/93: Por que reduzir não é a solução?" Agradecemos ao Zezé Olukemi e a todxs xs presentes.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Periferias

Terceiro mundo jovem e sua segunda pele
a fantasia de um black dos States
fazer de conta, curtir é da hora
mas a realidade não é Hollywood

Paulicéia globalizada
brancuras controlam tudo
o ser escuro
queira ou não queira
periferia
rabeira
e tudo às claras
artiganda da propamanhas
percebe quem sabe ler
artimanhas da propaganda

Hipocrisia é o nó do país desigual
sobram becos
e sonhos sem saída
hip-reali-hop pode ser show
igual futebol, samba, novela
as carências, num palco não cabem
universidade também para afros
só se a gente for quilombada
na democracia deles
realiwood não é hollydade.

(Jamu Minka)

Haiti

Haiti où la négritude se mit debout
pour la première fois et dit qu’elle
croyat à son humanité.

Aimé Césaire, Cahier d’un retour au pays natal

Grande teu passado,
célebre na história
e que alto teu grito liberto
até hoje movendo nossos braços
num gesto altivo d elança em riste!

Haiti,
sagrado no culto vodu,
heroico em Dessalines,
soberbo em Toussaint-Loverture,
“o primeiro dos negros”, Haiti!

Haiti,
meu verso quisera ser
ponta de lança e guizo de serpente
para expressar-te a ti!

(Oliveira Silveira)

Pa(z)xorô

ainda assim… o chão faz parte
dessa imensa curva
residência universal dos sonhos
onde a veste de pazciência
envolve a todos
e as mãos
modelam o ser nascente

olhar adentro
o todo é cada um
e há ondulações de calma
corpo e alma fundidos num só voo
desta ave celestial de luz
abraçando-nos com a abóbada infinita e azul

chuva-sêmen e afã de fecundar novas manhãs
ao fluxo ijexá de oxalufã
fé obstinada que nos guia
sol de oxaguiã
nas lutas do dia a dia
pilão
inhame de juventude
alegria
ainda que… o chão faz parte
dessa imensa curva
residência concha universal do sonho paz
adjá a nos conduzir à fonte
e o mundo a ser lavado
nas águas de oxalá.

(Cuti)

Impasses e passos

algemas do pão e do circo
e seu cotidiano cerco
às investidas do sonho

sono coletivo produzido em gabinetes
sono sem sonho
esclerose de nuvens brancas trotando trêfegas
esporas reluzentes
sobre nossos corações

a pergunta eleva sua crista:
– quem dentre nós mais de trezentos anos
de ruínas de quilombos
traz dentro do peito?

por muito tempo, ainda, mastigaremos o silêncio
no caminho para o grande lar
que já não temos?

no trajeto o enfrentamento
com as sereias e seu canto
sussurrado pelo vento
laços sedutores
para o nosso enforcamento

politicamente incorreta
sempre
a orgia das correntes
nosso medo balbuciando morte
em conta-gotas de sambas e serpentes

de repente
escorpiões encalacrados nos tornamos
(apesar de sorridentes)
sem disfarce
o que em face do desprezo se acende
contra o nosso próprio veneno

o “eu” se deita sobre o feno
negaceia o nós em movimento
da garganta se desatam para dentro
ecos que no lamento se afogam

o sol renitente ressuscita
a vida emboscada nas veredas

toco em brasa
a questão vem crepitada
fecunda e permanente
rolando
pelos glóbulos pretos
infectados de rancores brancos:
– quem tem mais de 300
de resistência no abismo?
silêncio incandescente
morre a esperança
em overdose de cinismo
e desabrocha a consciência em cactos

depois da chuva
somos
o horizonte e sua língua de arco-íris
descobrindo
o nosso próprio amanhecer.

(Cuti)

Cultura negra

ariânico afago
na suposta acocorada
afroinfância literária

nossa cor sim
e não
reelabora elegbará

orixás não tomam chás de academias
tampouco em mídia sui-seda
cedem

poema de negrura exposta
tece vida
na resposta
abrindo a porta enferrujada do silêncio

explodem
coices
o boi e o bode
entre folclóricas nuvens e teses
de negrófobas carícias

alvos, a-tingidos desesperam
em busca de tambores
ritos
puros mitos
em águas paradas
de poemas pardos
que lhes salvem da chuva de negrizo.

(Cuti)

Ofício de fogo e arte

nossa é esta saga desenhando o silêncio em cores
rebeldia e incenso

ainda que as batalhas
tenham talhado de tão somente vermelho
lembranças de mar e terra
nosso é este futuro entre luz e sombra
este alto-relevo telúrico
agigantando-se no esboço de todas as madrugadas e no mosaico das tardes

em ondulação muscular galopam as tintas
ao comando de corações pensantes
enquanto gritos vão-se fazendo cantigas sábias
de ninar a memória e seus pincéis incandescentes

se ácidos céus de aço abafam a singela respiração onírica
um afro horizonte reabre seus vitrais
oxumarescendo a vida

nos cios dos séculos
banzaram aguadas lacrimais de anil
agora a mais sutil semelhança epidérmica da história
é linha que realça o elo
do mistério
ousadias de gingar o belo e semear vagalumes sobre as
telas

oceânica
esta energia coletiva extrapola a cena de naturezas-mortas
transfigura a moldura
colore a parede branca
e mergulha em vários planos a perspectiva de seus voos

verdeamarelas garatujas velhas ranzinzando a liberdade
a mão infinitiza em multiplicidade cromática, pele e
paisagem de sobejos desejos

tudo se emprenha de um incessante movimento
vários tons de melanina e a pulsação de um ritual aceso.

(Cuti)

Com a porta aberta

o que é que vai ser
quando o samba abrir uma fenda
bem no meio da sinfonia?

com’é que vai ficar, compadre
quando a macumba
entrar na sacristia?

e quando a pureza da cultura abrir as pernas
e mostrar pra todo mundo
que nunca teve cabaço

a dança de terreiro
rasgar terno e gravata

a ginga der meia-lua-de-compasso na compostura

a gente puder falar
sem algema ou atadura

a verdade
partir a cara da hipocrisia

o pão for repartido na marra?

não adianta fechar a cara
nem se fazer de besta
qu’Exu vai rir na abertura da festa
e Cristo vai gargalhar pela primeira vez na história
e
viva o pagode
da memória liberta
e do futuro concebido
com a porta aberta!

(Cuti)