sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O brinde

Cento e onze furos
Cento e onze ancestrais em cólera
Cinco corpos negados
Em um hotel cinco estrelas...
Cento e onze, gradeados,
Aguardando a chegada...
É chegada a hora!
Vamos ouvir o brinde das treze taças!

(David Alves Gomes)

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Onde o espelho?

Para minhas irmãs negras

Este cabelo que lhe vai liso sobre a carapinha,
é o simulacro infeliz do que não és.

(Ao vestir-se com a pele do inimigo
o que de ti silencia e se perde?
Quantos animais conheces
que assim o fazem senão para reagir?)

Este cabelo pesa desfeito sobre sua carapinha.
Veste-a como um manto impuro
abafando o preto caracolado
sobressi dobrado:
filosófico.

Os fios se endurecem como cavalos açoitados,
e bradam da morbidez desta couraça
que te mascara branca.

Este cabelo requeimado e grotesco
sepulta o que em ti há de mais belo.
A dobra também é uma forma
de Ser.

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 145)

Negridianos

Para Cuti, Limeira e Guellwaar Adún

Há uma linha invisível
lusco-fusco furioso dividindo as correntezas.
Algo que distingue meu pretume de sua carne alva
num mapa onde não tenho territórios.

Minha negritude caminha nos sobejos,
nos opacos por onde sua luz não anda,
e a linha se impõe poderosa,
oprimindo minha alma negra,
crespa de dobras.

Há um negridiano meridiando nossas vidas,
ceifando-as no meio incerto,
a linha é invisível mesmo:
mas nas costas ardem,
em trilhos rubros,
a rota-lâmina destas linhas absurdas que desenhas
enquanto eu não as enxergo.

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 143)

Sometimes

Às vezes é um vento mais forte
e ele vem de longe, tangendo as colinas
E as tardes se emancipam de mim,
como se fossem feitas de puro desejo.

Um azul intenso devora meus dedos
e os olhos, inteiros, são de oceano e vão
e eu estou perdida: não há portas
mas as chaves persistem,
pendendo de minhas mãos.

Um vento que me fala em uma outra
língua
e, ainda assim, toda me devora,
e não há apelo,
e não há distância que o coloque de volta:
entra pelos meus cabelos
e faz deles sua mais perfeita morada.

Um vento, e eu de todo exilada.
Um vento, e eu desfeita,
calada.
Um vento, e, pobre de mim,
sou toda feita de Água.

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 140)

Poema-ebó

(pelo 20 de Novembro)

Dono das encruzilhadas,
morador das soleiras das portas de minha vida,
Falo alto que sombreia o sol:
Exu!

Domine as esquinas que dobram
o corpo negro do meu povo!
Derrama sobre nós seu epô perfumado,
nos banha na sua farofa
sobre o alguidá da vida!

Defuma nossos caminhos
com sua fumaça encantada.
Brinca com nossos inimigos,
impede, confunde, cega
os olhos que mau nos vêem.

Exu!

Menino amado dos Orixás,
dou-te este poema em oferenda.
Ponho no teu assentamento
este ebó de palavras!

Tu que habitas na porteira de minha vida,
seja por mim!
seja pelos meus irmãos negros
filhos de tua pele ébano!
Nós, que carregamos no corpo escuro
os mistérios de nossas divindades,
te vemos espelhado nos nossos cabelos de carapinha,
nos traços fortes de nossas faces,
na nossa alma azeviche!

Mora na porteira de nossa vida,
Exu!
Vai na frente trançando as pernas dos inimigos.
Nos olhe de frente e de costas!

Seja para nós o que Zumbi foi em Palmares:
Nos Liberta, Exu,
Laroiê!

(Lívia Natália - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 138-139)

Aborto, um direito só meu

Amei Gilberto, Miguel, Roberto
Arrebatadamente, sonhos de amor primeiro
E tive Lia,
Melanie,
Alex.
Amei Paulinhos (foram dois), Jorge, Vilela
Amores confusos e tumultuados
Delírios de amor e carne.
E tive Isabela,
Ágata,
Mel
Fui amado Steve (meu amor canadense),
Toni (amor manso como o que) e tive
Deidre,
Ayô e Romeu.
Pais e Filhos que nunca se conheceram.
Aborto... um direito só meu.

(Lia Vieira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 136)

Curió

Ele era sempre sorriso e riso
E gargalhadas escancaradas.
Dançava samba de roda, jogava capoeira,
animava bailes.
O cabelo bem cometido sob a leve camada de óleo
Os sapatos de um engraxado absoluto,
o brilho retumbante.
A tranqüila camisa de seda.
No pescoço, a conta grossa de aço.
Simpatia e adjacências. Mútua reciprocidade.
Curió de Vila Isabel. Gostavam dele. Ele de todos.
De pé ele estava, ali na parada de ônibus:
A viatura se aproxima.
"Abra os bolsos! Vire de costas! Mostre as mãos!"
Alguns protestos. O policial se redobrou.
"Entre na viatura"...
Curió, o rosto anoitecido, retrucou:
Nestas terras seu moço, nunca ninguém ousou
nenhuma afronta sem troco
nem agravo sem resposta.
A lei chamou outro da lei.
Tiros, gritos, correria...
O Curió calou o canto do encanto.
Só o sussurro das asas
Em sumida revoada.
Assassinato diário de pássaros.

(Lia Vieira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 132)

Iiiihh! Enjoei!

Ora vento, ora brisa, ora vendaval!
Ora bikinis, ora burca!
Ora eu, ora ela!
Ai ai ai ai! Cansei!
Hoje quero ser Alberta,
Uma filha de Ossain, rica e bela;
Decidida. Iluminada. Resolvida.
Rara. Não vira no santo à toa.
Com ela é preto no branco e branco sobre todas as cores.
Quero ser responsável, estável, imutável, incorruptível.
Quero ser Alberta.
Mesmo que às vezes me sinta Betinha.
E queria ser apenas uma menina
sem nenhum compromisso.

Ai ai, Betinha minha,
moça das folhas,
deixe espaço para quando eu queira voltar a ser Julinha.

(Júlia Couto - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 128)

Na sedutora noite preta

Preparei-te o jantar.
Desta vez, não resmunguei.
Quis fazer esse papel.
Não me tirou o brio,
tampouco o dever de banhar-me para ti;
fiz questão disso, como tantas mulheres.
Nada me difere das amigas apaixonadas
Que se rasgam de amor
Dos suspiros e olhos revirados
Até o tremular de emoção ao ouvir sua voz rouca na minha nuca
Preparei o jantar e o coração
E não me envergonho ou me arrependo.
Sou muito mulher pra ser sua e ser minha até o talo,
para ser feliz aos bocados
Aproveitando cada garrafada, cada bebericar de vinho,
fazendo feriado e dia santo das suas piadas,
tirando férias pro nosso suadouro prazer.
Preparei-te o jantar e me aproveitei de você;
te usei nesta noite como em tantas outras,
mas esta seria diferente
Seria apenas o "nós dois" numa noite negra como eu
Com um luar mais brilhante
que meus olhos no seu corpo em êxtase
Aaaahhhh!!!
Amanhã tiro folga e não cozinho pra ninguém!
Faço greve e faço pose até a próxima sedução.

(Júlia Couto - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, 125)

Bângala

Quando vou para o Bângala, onde morou Caymmi,
nasceu Luís Gama
Passo por Santana, Independência e:
Lama desfraldada como flâmula.

Gente, vaga gente, vagas
Pele, ossos, fumaças sem afagos
Entre sucatas e indecências
Contraponto entre Santana e Independência...

Carne, prato exposto, putrefato
Mercado vivo, sociedade de araque
Liberdade, dignidade, só boato
Tudo se resume ao trasgo do crack
Esqueléticas damas, dissolutas
Quase todas negras, é claro
Imagens vagantes, mortas, quixotescas não raro
Vistas apenas como putas
Os outros, catadores, reciclam a vida em alumínio, papel
Breves furtos, todos brincam
Sob a angústia do mesmo céu

Quando vou para o Bângala, meio demente
Onde morou Caymmi, nasceu Luís Gama
Transito nesta irônica antítese - Independência - de tantos
dependentes
E passo pelo quase fim da raça humana.

(José Carlos Limeira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 121)

Em Tanto ao Mar foram docas, grutas, locas

Buscando te encontrar
Agora refaço planos, cometidos tantos enganos
A nau segue seu rumo, navegar, navegar
Nosso oceano não é mediterrâneo
Nem será pacífico
talvez um tanto índico e indico
novos rumos e faróis, fronteiras, guerras e sementes
quero esse odor de velas içadas
possuo genoas e bujas todas infladas
nem sei se bombordo é mesmo bom
quem sabe boreste seja a guinada
sobre o atol dos teus lábios dos quais pouco provo
ao navegar me renovo e me lanço ao oceano atlântico
de novo desejo, e descubro outras enseadas
numa baía secreta e repleta de teus beijos!

(José Carlos Limeira - Ogum's Toques Negros: Coletânea Poética, 2014, p. 120)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO SETEMBRO

Registros da edição de setembro do Sarau Enegrescência, com recitais poéticos e as apresentações da poeta Luz Marques, do Coletivo Boca Quente, do escritor Fábio Mandingo, lançando o seu livro 'Muito como um Rei', e do poeta Gioavane Sobrevivente, lançando o seu CD 'Melanina'; além do Coletivo Pretas Empreendedoras e outros expositorxs apresentando belos trabalhos artesanais. Agradecemos a presença de todxs e já convidamos todxs para a próxima edição no dia 24/10.







REGISTROS DA III MARCHA INTERNACIONAL CONTRA O GENOCÍDIO DO POVO NEGRO - 24/08/2015

Registros da III Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, realizada no dia 24/08/15 e organizada pela campanha 'Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta'. O Projeto Enegrescência esteve presente, pois não dissociamos a literatura do ativismo político: a literatura negra traz em evidência as vozes negras invisibilizadas ou desumanizadas pela sociedade e pelo racismo institucional. As vozes dos nossos mortos estão presentes em todo texto literário preto e de resistência. #ReajaOuSeráMortx

REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO AGOSTO

Registros da edição de agosto do Sarau Enegrescência, na Casa de Angola na Bahia, com a presença do poeta Giovane Sobrevivente lançando o seu novo CD 'Melanina'. Agradecemos ao Giovane e todas as presenças.



REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO JULHO

Registros da edição de julho do Sarau Enegrescência, na Casa de Angola na Bahia. Além dos recitais poéticos, tivemos a presença do grafiteiro, ilustrador, poeta e atual conselheiro do Conselho Municipal de Cultura da Cidade do Salvador (Artes Visuais) Zezé Olukemi, que bateu um papo sobre a sua trajetória de vida e sobre o trabalho do graffiti. Como esta edição foi em protesto à proposta de redução da maioridade penal, exibimos o documentário "PEC 171/93: Por que reduzir não é a solução?" Agradecemos ao Zezé Olukemi e a todxs xs presentes.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Periferias

Terceiro mundo jovem e sua segunda pele
a fantasia de um black dos States
fazer de conta, curtir é da hora
mas a realidade não é Hollywood

Paulicéia globalizada
brancuras controlam tudo
o ser escuro
queira ou não queira
periferia
rabeira
e tudo às claras
artiganda da propamanhas
percebe quem sabe ler
artimanhas da propaganda

Hipocrisia é o nó do país desigual
sobram becos
e sonhos sem saída
hip-reali-hop pode ser show
igual futebol, samba, novela
as carências, num palco não cabem
universidade também para afros
só se a gente for quilombada
na democracia deles
realiwood não é hollydade.

(Jamu Minka)

Haiti

Haiti où la négritude se mit debout
pour la première fois et dit qu’elle
croyat à son humanité.

Aimé Césaire, Cahier d’un retour au pays natal

Grande teu passado,
célebre na história
e que alto teu grito liberto
até hoje movendo nossos braços
num gesto altivo d elança em riste!

Haiti,
sagrado no culto vodu,
heroico em Dessalines,
soberbo em Toussaint-Loverture,
“o primeiro dos negros”, Haiti!

Haiti,
meu verso quisera ser
ponta de lança e guizo de serpente
para expressar-te a ti!

(Oliveira Silveira)

Pa(z)xorô

ainda assim… o chão faz parte
dessa imensa curva
residência universal dos sonhos
onde a veste de pazciência
envolve a todos
e as mãos
modelam o ser nascente

olhar adentro
o todo é cada um
e há ondulações de calma
corpo e alma fundidos num só voo
desta ave celestial de luz
abraçando-nos com a abóbada infinita e azul

chuva-sêmen e afã de fecundar novas manhãs
ao fluxo ijexá de oxalufã
fé obstinada que nos guia
sol de oxaguiã
nas lutas do dia a dia
pilão
inhame de juventude
alegria
ainda que… o chão faz parte
dessa imensa curva
residência concha universal do sonho paz
adjá a nos conduzir à fonte
e o mundo a ser lavado
nas águas de oxalá.

(Cuti)

Impasses e passos

algemas do pão e do circo
e seu cotidiano cerco
às investidas do sonho

sono coletivo produzido em gabinetes
sono sem sonho
esclerose de nuvens brancas trotando trêfegas
esporas reluzentes
sobre nossos corações

a pergunta eleva sua crista:
– quem dentre nós mais de trezentos anos
de ruínas de quilombos
traz dentro do peito?

por muito tempo, ainda, mastigaremos o silêncio
no caminho para o grande lar
que já não temos?

no trajeto o enfrentamento
com as sereias e seu canto
sussurrado pelo vento
laços sedutores
para o nosso enforcamento

politicamente incorreta
sempre
a orgia das correntes
nosso medo balbuciando morte
em conta-gotas de sambas e serpentes

de repente
escorpiões encalacrados nos tornamos
(apesar de sorridentes)
sem disfarce
o que em face do desprezo se acende
contra o nosso próprio veneno

o “eu” se deita sobre o feno
negaceia o nós em movimento
da garganta se desatam para dentro
ecos que no lamento se afogam

o sol renitente ressuscita
a vida emboscada nas veredas

toco em brasa
a questão vem crepitada
fecunda e permanente
rolando
pelos glóbulos pretos
infectados de rancores brancos:
– quem tem mais de 300
de resistência no abismo?
silêncio incandescente
morre a esperança
em overdose de cinismo
e desabrocha a consciência em cactos

depois da chuva
somos
o horizonte e sua língua de arco-íris
descobrindo
o nosso próprio amanhecer.

(Cuti)

Cultura negra

ariânico afago
na suposta acocorada
afroinfância literária

nossa cor sim
e não
reelabora elegbará

orixás não tomam chás de academias
tampouco em mídia sui-seda
cedem

poema de negrura exposta
tece vida
na resposta
abrindo a porta enferrujada do silêncio

explodem
coices
o boi e o bode
entre folclóricas nuvens e teses
de negrófobas carícias

alvos, a-tingidos desesperam
em busca de tambores
ritos
puros mitos
em águas paradas
de poemas pardos
que lhes salvem da chuva de negrizo.

(Cuti)

Ofício de fogo e arte

nossa é esta saga desenhando o silêncio em cores
rebeldia e incenso

ainda que as batalhas
tenham talhado de tão somente vermelho
lembranças de mar e terra
nosso é este futuro entre luz e sombra
este alto-relevo telúrico
agigantando-se no esboço de todas as madrugadas e no mosaico das tardes

em ondulação muscular galopam as tintas
ao comando de corações pensantes
enquanto gritos vão-se fazendo cantigas sábias
de ninar a memória e seus pincéis incandescentes

se ácidos céus de aço abafam a singela respiração onírica
um afro horizonte reabre seus vitrais
oxumarescendo a vida

nos cios dos séculos
banzaram aguadas lacrimais de anil
agora a mais sutil semelhança epidérmica da história
é linha que realça o elo
do mistério
ousadias de gingar o belo e semear vagalumes sobre as
telas

oceânica
esta energia coletiva extrapola a cena de naturezas-mortas
transfigura a moldura
colore a parede branca
e mergulha em vários planos a perspectiva de seus voos

verdeamarelas garatujas velhas ranzinzando a liberdade
a mão infinitiza em multiplicidade cromática, pele e
paisagem de sobejos desejos

tudo se emprenha de um incessante movimento
vários tons de melanina e a pulsação de um ritual aceso.

(Cuti)

Com a porta aberta

o que é que vai ser
quando o samba abrir uma fenda
bem no meio da sinfonia?

com’é que vai ficar, compadre
quando a macumba
entrar na sacristia?

e quando a pureza da cultura abrir as pernas
e mostrar pra todo mundo
que nunca teve cabaço

a dança de terreiro
rasgar terno e gravata

a ginga der meia-lua-de-compasso na compostura

a gente puder falar
sem algema ou atadura

a verdade
partir a cara da hipocrisia

o pão for repartido na marra?

não adianta fechar a cara
nem se fazer de besta
qu’Exu vai rir na abertura da festa
e Cristo vai gargalhar pela primeira vez na história
e
viva o pagode
da memória liberta
e do futuro concebido
com a porta aberta!

(Cuti)

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Tambores

Tenho cor de noite
Quem se camufla no dia
é fraco,
Historicamente covarde
Apoiado nas reentrâncias
Dos fios do meu cabelo.

Tenho cor de tronco
Mais grosso e nodoso
Da árvore velha,
Rugosa.

Mãos calejadas
Mostrando ancestralidade
em cada gomo dos meus dedos.

Quer parecer comigo?
Deixe - me presenteá - la
Com as cem chibatadas

Não basta pintar o rosto
Dispenso alegorias
Minha luta é braçal
Todos os dias

É meu corpo
Minha pele
Dilacerados,
Marcados
Mas eu disparo
Sou bala perdida
Que atinge sua cara
Deflagrada da arma
Que você carregava.

(Gonesa Gonçalves)
Quando sou amor, sou maré cheia transbordando sobre pedras.

(Gonesa Gonçalves)

Anfitriã

Não pegue atalhos
No grande caminho
Que é meu corpo.

Vá devagar,
Seu moço.
Cautela pra não se perder.

Chegue na véspera
Deixe que faço a festa
Aproveite até o final

Entre lençóis
Na órbita da minha pele
Na cadência das minhas mãos,
Oásis:
Sou boa anfitriã
Quando o convidado faz o caminho certo.

(Gonesa Gonçalves)

Silêncio

Na sua ausência
Me encontro
Fria, partida
Em estilhaços

O mofo nas paredes
Gritam silenciosamente
A minha angústia

Silêncio, silêncio
Abrindo e fechando a porta
O silêncio incomoda

Te vejo milhares de vezes
Todos os dias
Nos barulhos de carro
Que cruzam essa rua

Mas o quarto
Todo morto da sua ausência
Me avisa
Você não vai cruzar essa porta.

(Gonesa Gonçalves)

Germinação

A fusão entre
Primavera e inverno
Estreita-se de cócoras.

Olhos d'água
Banham as flores
Que brotam
Sob o aroma secundina,
Espalhando pelo jardim
Novas estações.

(Lidiane Ferreira)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Preto innatura


Se todo dia tem preto e branco,
Mas a manhã e a tarde sempre vêm antes da noite;
Se toda fruta é colhida em cores vivas,
mas vai ficando cada vez mais preta na medida em que apodrece;
E se o dia, quando chove muito, sempre escurece;
Se a cor preta é sempre a dor do luto,
O passado se revela obscuro quando se morre moço
Se o sangue quando se torna negro é sinal de veneno
E é sempre escuro o fundo do poço...
Fui perguntar à mãe natureza:
- Porque, minha mãe, o mais claro sempre em primeiro lugar
E que tudo de ruim tende a ser preto?
Ela diz que é assim mesmo, a lei natural das coisas...
E que, o que de dia é muito belo, à noite é bem perigoso...
Já o preto velho diz que não...
               
                        ***

“Mô fio, o preto da frurta pôde aduba e inriqueurce o solo;
O dia iscuro, que anuncia a forte chuva, resfresca a nossa pele;
O preto do lurto é tomém um sinar de rerpeito;
O sangue tem que tá mermo negro, pegar cor mair forte,
pra alertar, antes da morte, a presença do veneno, etc...
Tú vê, mô fio?”
 - O quê, pai véio?
“Poi veja: o valor e a ordim de cada cor
depende muntio da nossa prórpia nartureza,
Não que seja de negrume ou brancura,
A verdadera beleza, pra mim, era a mistura,
a harmonia, a igardade pura, entre todas ela...”
                         
                      ***

Nunca hei de esquecer
essas palavras que ouvi do preto velho...
Um dia há de acontecer
Isso que ele tanto queria...

(Fábio Cunha)

Enegrecer-se


É o negro que desce nas ruas,
tomadas, lavadas, quebradas...
Preto que corre de dia e de noite
à conquista do pão,
Tomado de consciência,
lavado de resistência,
quebrado da luta,
São as ruas desse negro,
cujo pão é mais que alimento,
é ação!!!!!
É suor que escorre dos olhos,
lacrimeja sua história
e refresca a memória...
Sua conscientização!!!!
Se a realidade é assim tão branca,
o verdadeiro ser negro
é quem há de lhe em-pre-te-cer!
Nesse belo processo até mesmo o branco
pode sim, se enegrescer,
Porque não?!
Pensamento pequeno que se engrandece,
o preto outrora pobre, que se enriquece,
do pão e da essência.
Do Apartheid ao estandarte,
O lutar é coletivo,
Nesse espaço do qual faz parte
Onde tudo é só um motivo
pra lhe calar ciência,
A mais pura arte,
cada vez mais presente
Do ser negro, a vivência,
Do estar negro, a consciência,
Da sua cor, da sua luta, a sua crença,
O mais nobre e insaciável sentimento:
ENEGRESCÊNCIA!!!!

(Fábio Cunha)

sábado, 18 de julho de 2015

Ternura

Quando andamos pelas ruas
Vemos ensurdecedores olhares...

Nossos pés:
Descalços
Afastados
Repugnados
Por alvos sorrisos...

Não queremos mortíferas compaixões!

De mãos dadas
Construímos a nossa própria ternura.

(David Alves Gomes)

sexta-feira, 3 de julho de 2015

REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO MAIO

Registros do Sarau Enegrescência, edição do dia 23/05/2015. Neste dia estava prevista a presença do escritor Nelson Maca, lançando o seu livro Gramática da Ira. Contudo, por problemas pessoais, o escritor não pôde comparecer, informando que iria agendar uma nova data para participação no nosso sarau.


REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO ABRIL

Registros da edição do dia 18/04/2015 do Sarau Enegrescência, na Casa de Angola Na Bahia. Além dos recitais poéticos, tivemos a presença da esteticista afro Iachas Camime Machado que bateu um papo sobre a estética afro. Agradecemos à Camime e aos presentes

domingo, 26 de abril de 2015

Carolina Maria de Jesus

Comprei um sapato lindo número trinta e nove
sendo que calço número quarenta e dois. Andei
muito a pé, adoentei-me. Pra acalmar os pés e
não repetir esse ato insano fiz uma salmoura de
água quente e ensinei crianças e adolescentes
que não se vende o próprio sonho.

(Maria Tereza - Negrices em flor. São Paulo: Edições Toró, 2007)

Linhas vivescritas

Tenho papel e lápis em mãos
Um mundo de possibilidades escritas
Nas veias edificadoras do mundo.

Durmo sonhos de menina e
Acordo nas realidades de gente grande.

Viajo pelos espaços nativos de minha mente
Conheço lugares, sentires, prazeres e sabores.
Anseio sentimentos de vida
Construídos por abraços fraternos.

Descubro-me preta,
Mulher
Menina
Mãe
Útero que gera e dá vida
Cabaça que fertiliza o nascer do mundo.

Tenho papel e lápis em mãos
Um mundo de possibilidades escritas
No fluxo dos rios de mãe.

Tenho cenas vivescritas
Nas linhas que mapeiam a vida de minhas negras mãos.

Pretume de mulher

Sou preta, sou mulher
Sou este pretume que tanto vês
Pétala de uma rosa negra
Cheiro de óleo de coco
Emanando o ar
Maciez do mel de abelha

Corpo desenhado por Olorum
Sabedoria dada por Òbà
Mãos que enfeitam de Nanã
E beleza herdada de Ewa

Pretume de mulher sou eu
Cicatrizes de um tempo que não se escondem
Resistência do cotidiano
A mãe que desce as vielas da favela
E encara as faxinas nas casas dos patrões

Deusa africana sou
Rodeada de contrastes, lágrimas e sorrisos.
Fertilizo o solo do mundo
Dou vida para a vida
Recebo em troca migalhas do que sempre restou

E ainda assim serei sempre
Mulher e pretume.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O espelho

Floresta negra
De galhos fortes...
acinzentada e enrugada
Reflete
Majestosamente
Meio século
De vida-liberdade.

(Lidiane Ferreira)

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Sensus

Falamos a mesma língua
Do raiar do tempo
Falamos a mesma língua
Sussurada pelo vento
A língua do céu
Neste Sol da alvorada
Da nuvem sem véu
Em labareda
Falamos o toque
A vontade
A veia
O sangue...
A Vida em ascendência
Quimera em Transcendência

A língua que nos refaz
Em dias lentos
Transforma-nos
Em eternos
Vencedores do silêncio

Falamos sem voz
Em alta voz
A língua
A língua
A secreta
Língua
Falamos falamos
O toque
A vontade
De nascer...
A língua...
A língua da pele
O poema da pedra.

(Hirondina Joshua - poeta moçambicana)

Nocturno

É zero hora.
Não consigo.
Nem a minha alma dorme na noite em mim.
Não quero fazer nada. Não fazendo faço um exercício incompreensível: próprio da noite.
É zero hora. Encontro êthos passivos nos substantivos inabaláveis duma alquimia que desconheço e volto ao começo: penso e existo e não durmo e não me sou e não estou e não me conheço e quase me perco. Sou transitável, espírito devasso.

Comboio em caudas clandestinas. Subo até ao horizonte, sento-me ao lado da razão. A noite já bêbada, todo resto que me restou. Sou eu mesma, o demónio do devaneio. A substância intáctil da matéria. Já de nada sei. Já aqui não estou...

(Hirondina Joshua - poeta moçambicana)

Moenda

Encontrei, tatuado em meus receios, a memória de vários desencontros...
Sonhar, meche a adaga afiada racista que retalha a heróica coragem que encontro...
Cicatrizes são chagas abertas sob o disfarce do tempo,
é carne viva ardendo sob o sorriso sedento
esperando uma fagulha para acender covas que sepultam alegrias precoces...
A dor abriu as narinas da alma para reconhecer as fragrâncias da vida...
O vinho de lágrimas aprimorou o paladar na degustação do primordial,
agora quero o essencial: o anil do céu tingindo o dia cinza,
um sorriso de arco-íris estalando no céu da boca d’alma...
A tempestade pode ter doído, mas quem tem asas não teme o precipício...
O tronco não foi suficiente...

(Cláudio Andrade)

Ovo do capeta

Eu, que tantos sou
de vez em quando, perco a vez,
dou lugar àquela senhora, na mesa ao lado,
que me olha e se pergunta, o que eu estou fazendo ali...
Então viro o segurança do shopping me perseguindo por trás das pilastras,
o recepcionista que me barra na entrada da festa ... eu, a lista que se exclui...
Ressuscito o amor sepultado pela menina que tinha nojo da minha cor, sinto-me nojo.
Logo viro o policial que me agarra pelo colarinho e me manda procurar a minha turma,
carcereiro guardando navios negreiros, lustrando o tronco...
Justiça me fazendo referência da marginalidade...
História me excluindo do banquete do tempo...

Dou voz ao burguês com o discurso classista me excluindo a mim mesmo...
Nesse momento é hora de fazer abolição na alma, pois é na mente e no coração que se dá a colonização..

(Cláudio Andrade)

Sarau Enegrescência - 18/04/2015

Vamos celebrar as Literaturas Negra e Africanas!

Convidamos todxs para o Sarau Enegrescência!


Estética é também uma das formas de representação artística e cultural, principalmente quando se trata das estéticas afro. Por esse motivo, nesta edição, temos um bate-papo sobre Estética Afro com Iachas Camime Machado (Alternativa Roots)


Traga a sua poesia e a sua arte!


Data: 18 de abril de 2015

Local: Casa de Angola Na Bahia (em frente ao Corpo de Bombeiros da Barroquinha)

Horário: 15h


PARTICIPE DO EVENTO NO FACEBOOK: https://www.facebook.com/events/820639127973073/




terça-feira, 14 de abril de 2015

Blackness

Blackness, blackness
Duas vezes ao dia
A humanidade do negro como filosofia
Blackness, blackness
Duas vezes ao dia

Sobrevivi ao terrorismo do desânimo
Olhando para trás sem medo
Mergulhando em minhas raízes
Afrocentrando o meu corpo
Aprendendo com meus ancestrais

Blackness, Blackness
Duas vezes ao dia
A humanidade do negro como filosofia
Blackness, blackness
Duas vezes ao dia

O boi da cara preta revelou sua identidade
Apareceu consciente de sua alteridade
Conversamos sobre as urgências da negritude
Decidi levar uma existência menos hermética
Focando na minha africanidade sincrética

Blackness, blackness
Duas vezes ao dia
A humanidade do negro como filosofia
Blackness, blackness
Duas vezes ao dia

Coloque isso na sua mente
Não há como tornar-se negro impunemente
É preciso resgatar cada irmão
Mais solidariedade no nosso quilombo chão

Blackness, blackness
Duas vezes ao dia
A humanidade do negro como filosofia
Blackness, blackness
Duas vezes ao dia.

(Cristiane Sobral - Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz. Ed. Teixeira. 1ª ed. Brasília. 2014)

Queimando a princesa

*Inspirado na poeta Cristiane Sobral

A poeta manda avisar
que não lava mais os pratos

Tá estampado na capa
a batom
Mandou fazer as unhas
caprichou na cor do esmalte

Eu
poeta de carne e osso
vesti luvas de borracha
entrei de sola na porta da cozinha

Sexagenária
Ventre livre
Lei áurea
Carta de alforria
Ave Maria da Penha

Estranha delicadeza

O verso apagou a escrava
só falta queimar a princesa!

(Nelson Maca)

Não vou mais lavar os pratos

Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito. Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito. Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética
A estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto
Qualquer coisa
Não vou mais lavar
Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler, quero entender
O porquê, por quê? E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros…
Ah,
Esqueci de dizer. Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada
e olho a sujeira no fundo do copo
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata, cozinhas de luxo
E jóias de ouro
Legítimas
Está decretada a lei áurea.

(Cristiane Sobral - Não vou mais lavar os pratos. Dulcina Editora. 2ª Edição. 2011. Brasília)

Página Preta

uma página preta
não dá conta da nossa demanda
mas já é um outro negro começo

uma página preta
não é tudo o que queremos
mas já anima o corpo cansado da luta

uma página preta
em tempos de tanta besteira
um ensaio sobre José Carlos Limeira
preta página subvertendo a lógica da procura
salpicando tinta fértil nesse universo de brancura

o mundo em preta cor
uma página preta
invadindo a retina do planeta
mostrando que o preto combina
com tudo.

(Cristiane Sobral - Cadernos Negros 37. Poemas Afro-Brasileiros. São Paulo. 2014. Antologia. Ed. Quilombhoje.

Pixaim elétrico

Naquele dia
Meu pixaim elétrico gritava alto
Provocava sem alisar ninguém
Meu cabelo estava cheio de si

Naquele dia
Preparei a carapinha para enfrentar
A monotonia da paisagem da estrada
Soltei os grampos e segui
De cara para o vento
Bem desaforada
Sem esconder volumes nem negar raízes

Pura filosofia
Meu cabelo escuro, crespo, alto e grave
Quase um caso de polícia em meio à pasmaceira da cidade
Incomodou identidades e pariu novas cabeças

Abaixo a demagogia
Soltei as amarras e recusei qualquer relaxante
Assumi as minhas raízes
ainda que brincasse com alguns matizes
Confrontando o meu pixaim elétrico
com as cores pálidas do dia

Pixaim, elétrico!

(Cristiane Sobral - Não vou mais lavar os pratos. Dulcina Editora. 2ª Edição. 2011. Brasília)

Escurecimento necessário

Inveja branca?
vê se te manca
é tudo farinha
do mesmo saco
racista.

domingo, 12 de abril de 2015

cavalo de ogum

o preto velho rodopiou
três vezes no terreiro
pitou cachimbo
bebeu marafa
dançou caxambu
no jogo do ifá
adivinhou o mistério da vida

(Cláudio Bento - Carnaval candombe)

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Recado pra moça de cabelo black power e mini saia em um dia chuvoso

Seu cabelo, moça
não é bandido
não prenda
nem amarre
seu cabelo, moça
não é ruim
assim como o tempo
está apenas chuvoso
seu cabelo, moça
 não é duro
como  diamante
mas acho jóia
seu cabelo, moça
não é assanhado
e você de saia curta
também não é assanhada
é isso, moça
saia pra chuva
curta a vida
de saia curta
e cabelo solto

História de um cabelo

A censura
ruim
A traquinagem
soltá-lo
O castigo
pega, estica e puxa
depois prende
bem apertado
lágrimas soltas
Não brinque, menina!
O juízo
duro
A sentença
forjá-lo a ferro e fogo
até ficar bem lisinho
a chuva tornou-se inimiga
estação,  só verão
mas o calor trazia suor
e vergonha
Não dance, moça!
O motivo
armado
Deflagrada
a guerra química
veio o ardor, a dor
a angústia, o choro
muitos fios
e ilusões perdidas
não queira muito, mulher
O conceito
Rebelde
A solução...
Meu cabelo não tem problema!
O tratamento...
Meu cabelo não está doente!
Chegou o questionamento
e com ele  a  rebeldia
Chega!
Depois a atitude
cabelo crespo e livre
finalmente
a escolha é minha!

(Rosana Paulo)

Ancestral

Perseguimos as gaivotas da alegria, espantadas pela artilharia da alvura
autores de uma história tenebrosa, arianismo, crucificando minha cor escura
codificando na melanina de minha pele, a semântica, semiologia do mal
Minha cor, meu povo, minha raça, na versão de sua doutrina, virou algo bestial.
Catalogaram nossas expressões, subestimaram nossa arte, estigmatizaram nossa beleza
mas não foram capazes de sepultar a nossa alma, de deter o nosso canto, nem de roubar minha realeza...

(Cláudio Andrade)

Libertar a poesia

Dou voz a uma dor calada,
essa história de boca costurada a arame farpado
solfejando jingas tristes em meio ao festim da ironia.
Estrangulo a felicidade que rebola e escorrega das fartas nádegas.
Nas vielas, visto farrapos, no exílio de meu sorriso banguela 
onde deixo a alegria de cócoras em busca da miséria que a defenda.
Até o poema tortura, versos são navios negreiros sepultando o que foge à dominação. 
Vomito a cicuta engasgada no esquecimento aniquilador de dores sangradas no horizonte do delírio. 
Cravei liberdade no cravo que perfuma o quilombo de meus olhos que serenam sangue. 
Usaram ferro, em brasas, para marcar meu lombo, mas minha chama queimou a brasa!
O ferro que alisa a honra não passará sobre os caracóis de meus cabelos crespos. 
A métrica brocha não masturba minha vaidade de beiço carnudo, tudo aqui é mais quente, e minha beleza, ela dança no ritmo da cópula...

(Cláudio Andrade)

terça-feira, 7 de abril de 2015

Quem sou eu?

Quem sou eu? que importa quem?
 Sou um trovador proscrito,
 Que trago na fronte escrito
 Esta palavra — Ninguém! —
 (A. E. Zalvar — Dores e Flores)

 Amo o pobre, deixo o rico,
 Vivo como o Tico-tico;
 Não me envolvo em torvelinho,
 Vivo só no meu cantinho:
 Da grandeza sempre longe,
 Como vive o pobre monge.
 Tenho mui poucos amigos,
 Porém bons, que são antigos,
 Fujo sempre à hipocrisia,
 À sandice, à fidalguia;
 Das manadas de Barões?
 Anjo Bento, antes trovões.
 Faço versos, não sou vate,
 Digo muito disparate,
 Mas só rendo obediência
 À virtude, à inteligência:
 Eis aqui o Getulino
 Que no pletro anda mofino.
 Sei que é louco e que é pateta
 Quem se mete a ser poeta;
 Que no século das luzes,
 Os birbantes mais lapuzes,
 Compram negros e comendas,
 Têm brasões, não — das Kalendas,
 E, com tretas e com furtos
 Vão subindo a passos curtos;
 Fazem grossa pepineira,
 Só pela arte do Vieira,
 E com jeito e proteções,
 Galgam altas posições!

domingo, 5 de abril de 2015

REGISTROS DO SARAU ENEGRESCÊNCIA - EDIÇÃO MARÇO

Registros da edição de março do Sarau Enegrescência, na Casa de Angola Na Bahia, em 28/03/2015. Além dos recitais poéticos, tivemos a presença da Sandra Muñoz, Coordenadora da Casa Cristal Lilás da Bahia, que promove a prevenção e o enfrentamento à violência contra a população LGBTT. Agradecemos aos presentes e já convidamos todxs para a próxima edição no dia 18/04.



sexta-feira, 3 de abril de 2015

Malditas sejam todas as cercas

Há quem não veja,
há quem não queira.
Mas há de se saber que
os séculos e o sangue,
em seu gotejar,
queimarão todas as cercas.

Há de se saber que 
as estacas e os arames,
os espinhos e os limites,
serão queimados 
para mover a locomotiva do novo mundo.

Os muros e todo o concreto
não mais se sustentarão.
As ruínas dos castelos
provarão que tudo será o povo
E o povo será tudo.

Maldito seja este velho mundo, 
incoerente, moribundo e caduco.

(Caio Prata)

Luta negra

Cabelo crespo,
cabeça cheia.
Pele preta,
orgulho forte.
Emaranhados de resistência
em pequenos cachos de proteção.
Atabaques,
Erês astutos.
Agogôs,
Odoyá às águas.
Pés descalços varrendo os ares
Em lutas de arte e dor.

Lábios grossos,
fala firme.
Antigas crenças e patuás.
Para cada pé há uma pedra,
mas não é à toa que comecei a andar.

Calunga

instrumento-me
Omulú escarpado
além das úlceras
descascando
os corpos fechados

habito
o refúgio doloroso
dos inerciados
nos pomposos carneiros

no escaldante purgatório
prevalecido
em angústias
desosso as cactáceas
vibrações

fulgurando adágios
na encruzilhada
dos desamparos
conduzo
os rejeitados
ao Senhor das Moscas

Akangatu

desbravo o enigma
dos 13 ciclos lunares
que se escondem
no caracol vertebral

- a gestação lacrimeja
no totem da origem -

rompo auroras
com o puro rito
da saudação em brados
evocando os ancestrais

quarta-feira, 1 de abril de 2015

O teu estilo afro

O teu estilo afro-moçambicano
Conquistou à ambição da minha contemplação
Ele conseguiu encantar o meu lado mais céptico
Com a sua genuinidade e envolvência remeteu-me às origens

Tu és o que de mais belo a natureza pariu
És a essência da água, a melodia dos pássaros
És o gargalhar das montanhas em tempos chuvosos
És o desabafar do vulcão em soluços eruptivos

Sim, tu, menina de sorriso tímido atrevido
Sim, tu, dona de um gingar envolvente
Sim, tu encantas meu mundo com teu sorrir rítmico

Oh viúva branca de pele negra da raça de cor de arco-íris
Oh singela extravagancia machanganamente fashion
Revelaste-te o ar ao gosto do sopro do vento no assobio de um coração alegre
(Xindire Xa Ka Mabote - poeta moçambicano)

domingo, 29 de março de 2015

sábado, 28 de março de 2015

W.C.

Os batons jogados na pia,
Seios rígidos,
Corpos em erupção...
Descobrimentos...
Um amor juvenil
De duas ovelhas
Nas manhãs de catequese.

(Lidiane Ferreira)

Meia-noite

Pés quentes em chãos gelados
Passos lentos e trêmulos...
Janelas puladas...
No santuário
Um aroma absinto...
Festa dual
O pecado expelido pelo sexo
Enquanto Deus dormia.

(Lidiane Ferreira)

domingo, 22 de março de 2015

Eu não quero troco

Olhaêê, a poesia Preta freguêsa! (2 x)

Venham, venham! Chegue mais!
Tenho letras misturado a sílabas,
Sílabas misturada a versos,
Versos de todos os jeitos e formas,
E de versos.
Ah! E de versos eu entendo bem.

A nossa moeda de troca, não é dinheiro,
Não é cartão, não é cheque,
É o teu sorriso e um pouco do seu tempo.
Pode ser?

Olhaêê, a poesia Preta freguêsa! (2 x)

chegando hein? chegando!
subindo a ladeira com o meu cesto de falas lindas,
Cheios de estrofes,pontos gramaticais,
Interrogações, pontos de seguimentos,
Travessões, dois pontos:
Exclamações!

A nossa moeda de troca, não é dinheiro,
Não é cartão, não é cheque,
É o teu sorriso e um pouco do seu tempo.
Pode ser?

Olhaêê, a poesia Preta freguêsa! (2 x)

Ô cumadi! Vai pegar outro exemplar comigo hoje?
- Sim, sim!
- Tem aquela poetisa Preta, a Gonesa Gonçalves?
- Tem aquele poeta Preto, o Raphael Mukumbi Lisboa?
Tenho sim cumadi, tenho sim. Tenho esses e outros mais de 300 que nos representam e nos representaram por todos esses anos!

Não há mercado ou venda quando se fala de poesia Preta,
Porque se marginais somos, o lucro é a consequência,
Somos o boicote a esse tal jogo de interesse elitizado,
Somos a derrubada dos medalhões entregues a esses bostéticos acadêmicos,
Somos a luta pelo verdadeiro direito,
Somos a fala dos que promovem uma Nova História,
Somos a dor dos que já se foram.
Somos marginais...
Somos marginais andantes, semeando a resistência.