domingo, 22 de fevereiro de 2015

Caderno de retorno

Pele radar que indexa
            um looping
            ao atabaque
            um anjo
            à sua queda
            Iracema
            à sua novela
alvo que incinera um atirador
            no teto

(…)

Para uso irrestrito a pele em desafio
            a todo gesto
coleção de selos que o vento
            dispersa da janela

(…)

A pele procura os naipes para
            entrar no jogo
mais se arroja quando desnuda
            o homem
            através do verbo

(…)

Pele não é o cárcere nem
            o texto
            o papel
            a retícula
            para roteiro em zoom
quiçá um mapa que muda enquanto viaja
            e se fixa quando
            escorregadia
                nos tece

(…)

Estou de volta a casa não para visitar
os carneiros da minha gente
uma vez mortos
                                   expostos.
O que espero deles não é carne
                                   mas raiz e errância.
A experiência acumulada sendo
            o último da classe
            o único entre os outros
            o suspeito número um
            a prova no fundo do poço
apodreceu para adubar minha vontade.


(…)

Como cerzir um país com linhas várias
onde uma se quebra
outra a emenda
e por não se amarem se enovelam
orquídeas na mesma escarpa.
A voz arranha a pintura do carro,
reabre no dia uma herança de embargos.

O que está dito é ditado?
            Não temos guerra, nem terremoto
            nem ebola, ruína ou atentado
            não temos cisma nem avalanche
o que vemos se não é alegria
são seus disfarces

E os ouvidos, que letrados noutra música,
            se escalavram?

Tenho uma laranja nas mãos a faca
para salvar os gomos desvia
das partes cariadas.
A palavra descasca o país: num ermo botequim,
entre bacon e varejeiras, a pele de um conta
o que ele por sua boca não tramaria.
            Miríades fábulas que importa?

Sua sombra que a fraca luz projeta recusa
            a rede da casa-grande
            o título a prazo do barão em débito
            a cadeira del-rey
            a merda da casa-grande
            a dissertação elogiosa da selva
            o piano
a culpa de não amar o deus imposto

(…)

Discutimos sobre fresas grandes y pequeñas
et on dita u même temps que ce sont originales
lês traces de notre nouvel artiste:
— est-il um naïf?
O abismo do país se ilumina,
                        acelera minha ferida.
o que em mim celebra
                        cospe esculpe alucina.

A vergonha de quem não inventou a pólvora
virou bandeira de quem calçou o continente.
A voz não procura esse rastro
procura o sentido além daquel esperdiçado
porque não as inventamos
            teimamos em aferir
                        a roda
                        a pólvora
                        a palavra

Contra a blitz na memória
a Memória.
Contra o desprezo ao que dançamos
a Dança.
Contra o repúdio ao que falamos
a Fala.

Nos fundos do país a festa não termina
será uma para disfarçar outra guerrilha?
Quem a percorre
desde a sala
pensa nos esqueletos
que trepidam sobre outros emudecidos.

São nove horas da noite em 1844
            os presos assustam a Câmara
            e os coletes da cidade de Salvador.
            No subsolo da lei a insubmissão
            deborda em sambas de crioulos
            ou africanos?
            Serão idênticos ou mais diversos
            quando se ajuntam?

(…)

É possível amar onde o desembarque de escravos
se multiplicou como as moscas
                                               sobre as bananas?
Qué pretendes quando olvidas esta memoria
            la continuación del massacre?
            cette odeur de cheveux au feu?
            a fome como sintaxe?

A voz escassa raspa as unhas no caos.
Aquele de quem a bala não se enamorou,
vai seguro e não se espanta.

            Passeia a orla, tênis e bicicleta
            artefatos que sedam os calos.
            Vai como se, por dentro, a luta
            entre capitão do mato e escravo
            tivesse cessado. Vai ao ar livre
            contra a vigilância da morte.
            O tênis brando, roupa de marca
            documentos de exorcismo diário.
            Vai discreto e não balança,
            pedra alguma lhe tira o passo.
            Até que, desde dentro, a luta
            explode em seu encalço. Ia de
            tênis bicicleta, por que o abraçou
            a bala do itinerário desviada?


(…)

Ó como somos plásticos
            para olhar de esguelha
            e entender os mitos.
Mais uma série de ensaios
explica — o país era outro mas, iludidos,
deitamos gatos para acordar lebres.
Ante as versões
de spix, martius & company
            atenção, repare, escute
            a pulga atrás da orelha.

Como soou o país tocado pelas mil duzentas
e setenta e três línguas indígenas
antes que minasse
a nuvem, o vento, a tempestade?
            Como o recitam as cento e oitenta
            exiladas do dicionário?
            E as africanas que negociaram
            em senzalas e praças?
            E o português se arvorando
            em camaleão nos trópicos?

(…)

No país onde quem cala consente,
grassa outra tecelagem
            não gira humores
            não lubrifica sirenes
            hora extra não faz
Tece sem novelo a rede para as aves de rapina
            não se dá um medo
            se ama de filhos.
Como um bordado, retém o pano de quem
pensa dominar o desenho.

Tenho doze fôlegos e uma educação
para constranger os desavisados.
O que assisti ao entrar pelos fundos
da cidade não me calcinou as retinas
            ao contrário
encheu de impertinência os meus escritos.
            Os que fendem a pedra
            me ensinaram o avesso
            os papéis roídos
            a trituração por método
            o pai me instruiu que é por dentro
                        a ebulição da lava.

O país tem fendas grutas corredores
uma vocação para morder
que estremeceu Hans Staden
            mordemos a cauda e a cabeça
            deglutimos sem mastigar
            engolimos o sapo
            salivamos marimbondo
Sabemos que deus alarga a goela
quando tira os dentes.
Não cuspimos no fogo para não
minguar a crista.

Morremos pela boca, exceto Exu,
            guia de Tirésias
que desacata Gregório de Matos
Macunaíma e François Villon.
            Exu calibã
luva insuspeita de Shakespeare
caçador que tem em si a caça
e se irrita
preso a uma dezena de nomes.

(…)

A notícia desse espanto estilhaça ao meu lado
            por que me enviaram
            um postal de Luanda?
por que há tempos o litoral do país
            aprende outros continentes?

(…)

(Edimilson de Almeida Pereira)

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