sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fotógrafa de sombras

              Noite fria. Sentada na beira da cama ela conversa com o seu diário. As letras arredondadas feitas pelas mãos habilidosas vão enfeitando as páginas coloridas do velho diário que ela carrega aonde vai há mais de 15 anos. Vira-se de lado e põe o diário sobre a penteadeira onde guarda um arsenal de maquiagens e perfumes, levanta-se até o pequeno e mal acabado banheiro. Tira o fino roupão de seda quase transparente a sua ínfima calcinha de renda, abaixa-se de frente para o balde e banha-se com uma pequena cuia de madeira da água gélida que buscou de manhã na bica da rua.
            Enxuga-se numa toalha rosa, dessas com uma tira de fita com desenhos na ponta, bordada com uma fita rosa, desgastada pelo tempo. Senta-se à frente da penteadeira e amassa com as mãos os grossos cachos do cabelo e vai modelando-os com um creme de pentear que exala o pequeno quarto. Põe o seu batom vermelho mate, passa o lápis preto ao redor dos olhos, dando uma leve puxada no final para dar um efeito Cleópatra, caminha até o seu pequeno guarda-roupa, onde amontoa tudo que ela tem e pega a sua melhor camisola. Ganhou de uma velha lavadeira que roubou de sua patroa que não lhe pagava os serviços há algum tempo. Por gratidão por tê-la ajudado a cuidar do filho que esteve doente, retribuiu com a peça. 
            Veste-se no roupão e bate na porta ao lado. Pede um pouco de gelo e deposita numa panela de alumínio onde coloca a garrafa de vinho barata que comprou no mercado. Pega em cima do guarda-roupa duas taças que comprou para ocasiões especiais e dispõe sobre a penteadeira ao lado da panela com gelo e um pote de azeitonas.
            Enquanto espera vai modelando os cabelos com as mãos cuidadosamente. Vai levantando com as pontas dos dedos tentando alcançar a raiz e hidratando a juba com pequenas porções de creme. E olha no espelho e vê o cabelo para o alto, crescendo para um céu que ela quer alcançar.
            Está feliz, liga o velho radio de pilhas e começa a dançar ao som de Gaye com sua camisola esvoaçando pelos seus rodopiares. E pensa que quando era criança queria ser bailarina, mas a professora disse que era difícil uma bailarina preta por causa dos músculos. Decidiu então escrever para ser o que quiser e é o que quer no seu diário.
            Senta na beira da cama, abre o pote de azeitona e põe uma na boca, sentindo o forte salitre da conserva e abre a garrafa de vinho. Enche uma das taças e põe-se a bailar e beber pelo pequeno vão rodopiando e cantarolando ao som das canções tocadas na rádio.
            Para em frente ao espelho e olha-se. Vê uma mulher gorda e cheia de estrias incompatível com seu belo rosto. A boca carnuda, a sobrancelha bem desenhada, nariz... Tudo se perdia naquele espelho grande que mostrava uma verdade que ela aprendeu desde pequena por onde passou.
            Sobe na cama e começa a dançar sobre os lençóis. Vira-se para a parede maior e começa a observar sua bela juba na sombra, orelhas quase cobertas pelos fios, pescoço comprido e corpo. Corpo perfeito. Vê perfeitamente dois braços, pernas e um tronco robusto e acha linda a sua companhia e ela quer beijar e abraçar naquela noite fria quem te acompanha. Já sabe com quem está bebendo. Corre até a gaveta e pega uma maquina fotográfica que ganhou de um velho cineasta francês com quem teve um rápido caso quando morava pelas ruas do Pelourinho. Vira-se para a parede rosa e captura a sua sombra. Guarda a máquina com cuidado, pois ali está a sua companhia inseparável e perfeita.

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