eu
falo as vozes de totunha, do avô mazola, do tio balê e de toda uma nação de
gente que, sem saber, carregou no dentro de si a voz dos cantos, a felicidade,
a angústia e uma história que se perde no seu começo. trivó duzinha cozinhava
ovos com olhar dos olhos (manduca fazia correr o que não tinha perna), e
derramou em meu sangue esse calor de poleiro, de algazarra de penas e cantoria.
vai longe os conselhos de zefa, as garrafadas de pantião, as rezas de segredo
produzindo boa cura, mesmo naqueles que não se viam pelos olhos da presença.
falo sem força de querer ou desejo de pensar. é corredeira d'água, correndo em
pedra de seixo, em grandes quedas e sem evitar grotão. é qual pensamento meu.
de lá vem sofrimento que me dói aos ombros, me pesa as pernas e me cansa o
corpo. essa coisa de fala que fala essas coisas de sem viver, vivido, sem
avistar, já sentido e quando visto é reassombro de reencontro. eu falo por
totunha, mazola e balê: príncipes e reis, princesas e rainhas. de mim nada sei,
nada falo, nada quero para. me perco no zarolho dos olhos da meia-noite. me
reassumo. quero que ouças o canto da flauta de osso e tenhas maneiras suaves de
bater o coração, ao possuir tua suave dona. tenhas tu maneiras suaves de rasgar
o pão e repartir teu sangue, e participarás do mistério do riso que borbulha em
luz de sol, inda que meia a noite; quando serás ceia de ti mesmo. eu falo a voz
do vento que zune e tal que nem flauta seus elementos modulam em minhas
cavernas suas melodias. apura-te que me resumo e um tan tan tange longe, tan
tan tange longe, tan tange longe, tan tange longe, tan tange longe, tan tange
longe...
(Waldemar Euzébio Pereira - Cadernos Negros, os melhores poemas)
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